Os outros

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José Carlos Freire, Professor da UFVJM,
Campus de Teófilo Otoni/MG

Em 1964 era publicada “A Legião Estrangeira”. Longe de se referir a qualquer aspecto militar ou de guerra, o livro de Clarice Lispector apresenta uma coletânea de contos retratando personagens diversos em momentos corriqueiros. Trata-se de uma legião, mas de pessoas comuns. E é exatamente aí que se encontra a força da narrativa. Em que medida as situações do cotidiano podem nos servir como elementos de reflexão?

Os críticos invariavelmente associam “A Legião Estrangeira” a duas ideias que, por sinal, estão presentes em quase toda a obra de Clarice: a epifania e o estranhamento. Sobre a primeira, tratei um pouco no texto acerca de “A paixão segundo G.H.”. São as situações filosóficas, ou seja, momentos de atenção aguda nos quais tomamos consciência do que somos, do que estamos fazendo ou vivendo.

O estranhamento forma um par inseparável com a epifania. Podemos dizer que esta resulta quase sempre daquele. Como bem apontou Noemi Jaffe nas suas análises, “A Legião Estrangeira” nos apresenta diversas situações de estranhamento, assim como pessoas que se estranham. Vamos a alguns exemplos rápidos.

No primeiro conto, “Desastres de Sofia”, vemos a relação entre a aluna e o professor. Durante uma atividade didática simples ela se vê incapaz de responder às perguntas do professor; quer ficar e quer fugir; a admiração e o encantamento se misturam com o sentimento de raiva. É um breve momento, mas significa muito na vida daquela criança que, anos depois, lembrará do ocorrido como fato significativo no seu amadurecimento.

Em dois contos temos a ideia do esgotamento de relações, quando se chega a um ponto em que os papéis até então assumidos já não se sustentam. É o caso de “A mensagem”, que trata da amizade de dois adolescentes, e “Os obedientes”, sobre um casamento que acaba em razão de um mísero dente quebrado. De maneira trágica também termina a amizade (ou fantasia dela) em “A solução”.

Há também os extremos etários: no conto que dá nome ao livro, “A legião estrangeira”, temos a emblemática figura da menina Ofélia; no comovente “Viagem a Petrópolis”, a luz se volta para a velha senhora, Dona Mocinha, jogada de um canto para o outro.

Crianças, velhos, adolescentes. Em todos os casos estamos diante de circunstâncias que suscitam o estranhamento, a interrupção de um roteiro, um deslocamento dos protagonistas que provoca, também em nós, a necessidade de observação atenta. Assim é a mulher que enfrenta baratas em “A quinta história”; a mãe que administra sentimentos tão díspares dos filhos como a ternura e o luto pela perda de animais domésticos em “Macacos”. Há, ainda, a inquietante cena da senhora que prepara o café da manhã em “O ovo e a galinha”. Momentos triviais, mas carregados de sentido reflexivo.

Nas palavras de Clarice, o estranhamento seria isso: “Como se meu olho curioso se tivesse colado ao buraco da fechadura e em choque se deparasse do outro lado com outro olho colado me olhando”. Magnífico! Eis que, distraído, deparo-me com a vida mesma me olhando, sem que eu possa fugir.

Os gregos tinham pelo menos duas maneiras de falar sobre o tempo, com base na mitologia. Uma forma do tempo é o “Chronos”, associado ao correr das horas, dias e anos. É o mais conhecido: o implacável tempo do relógio. Outra é o “Kairós”, associado à ideia de momento oportuno, ocasião específica em que algo se torna intenso ou grandioso. O primeiro é continuidade; o segundo é interrupção.

É possível que tudo em nossa vida individual e social seja vivido apenas cronologicamente, como sucessão de eventos. Porém, se estivermos atentos, pode haver a suspensão desse tempo que a tudo vai consumindo e deixando para trás. É esse o papel do estranhamento e da epifania: um corte no tempo, uma intensificação que barra a lógica das horas, a crono-lógica. É quando de dentro do Chronos, o olho do Kairós nos enxerga.

Nesse sentido, o livro de Clarice é um convite belíssimo a pensarmos nos muitos momentos de “Kairós” que podem surgir na vida de cada um de nós, assim como em nossa vida coletiva. Walter Benjamin, por exemplo, foi um autor que, ao seu modo, tratou de tal interrupção como mudança na ordem das coisas, que revolucione tudo o que está posto e que, antes, parecia indestrutível.

O leitor certamente terá sua predileção entre a série de contos. Eu tenho a minha: “A repartição dos pães”. É uma cena carregada de simbolismos. Um almoço de sábado, pessoas que se reúnem sem a vontade de estar juntos. Todos ali presos, “como se nosso trem tivesse descarrilado e fôssemos obrigados a pousar entre estranhos”. Ocorre que a dona da casa os surpreende com uma farta refeição, “uma mesa para homens de boa vontade”. A mulher, que “dava o melhor não importava a quem”, quebrou o ciclo do marasmo no qual estavam os convidados, sem prazer e sem fome. A abundância e a beleza foram fatais: “aceitamos a mesa”. Não havia mais tempo, nem urgência alguma, nem cobrança: “Era reunião de colheita, e fez-se trégua. Comíamos”. O pão partilhado entre estranhos. Não por acaso, as religiões em sua quase totalidade têm no ritual da partilha a expressão do divino, a manifestação do sagrado que irrompe.

Por isso penso que no livro A Legião Estrangeira é sobretudo a figura do outro que provoca os protagonistas, que os retira de sua cápsula protetora. Estar com outro é um sair de si. Há quem prefira negar o outro e, com isso, fechar- -se; há quem escolha receber o outro e, vendo-se nos seus olhos, com ele partir o pão. No primeiro caso, todos perdemos. No segundo, o encontro é como “um chão onde nós todos avançamos”. A sociedade justa e livre será semelhante a esse almoço de sábado.

Sugestão de leitura: “A Legião Estrangeira” (1964), de Clarice Lispector. Publicado pela Editora do Autor. Disponível em PDF na internet. Contato: freire.jose@hotmail.com

1 COMENTÁRIO

  1. É de grande felicidade ter a oportunidade de ler uma análise comentada das obras dessa grande escritora brasileira. Parabéns professor José Carlos Freire.

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