Delegado de Polícia que preside Inquérito Policial não é testemunha

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Jeferson Botelho Pereira – Professor de Direito Penal
e Processo Penal. Especialização em Combate à
corrupção, Antiterrorismo e combate ao crime organizado
pela Universidade de Salamanca – Espanha. Mestrando em
Ciências das Religiões pela Faculdade Unida de Vitória/ES.
Advogado e autor de obras jurídicas. Palestrante.

E assim, não custa nada lembrar que a principal função do Delegado de polícia na presidência do Inquérito Policial é conduzir com ética, equilíbrio e esmero o direcionamento das investigações e apresentar ao sistema de justiça a reprodução histórica dos fatos com máxima fidelidade, jamais acusando ninguém, nem absolvendo, devendo ficar de fora da arquibancada das paixões policromas, sendo, portanto, elo social, porta-voz da isenção e primeiro juiz natural da causa quando os fatos ainda estão em trepidação, com o abalo do sentimento social, quando ainda estão a efervescer as comunicações nas redes sociais, nos grupos de informações, nos juízos apriorísticos dos históricos policiais, e assim, deve o delegado de polícia não deixar a balança pender para nenhum dos lados, deve ele constituir ponto de razão e instrumento de justiça social, jamais figurando-se como testemunha quando da presidência das investigações, quando na verdade, seu relato é apenas e mera repetição do que fez constar no bojo do caderno reprodutor das misérias e incongruências sociais.

É comum o Delegado de Polícia em pleno exercício da função, ser intimado no Poder Judiciário para servir de testemunha sob inadvertida e imprópria ameaça de prevaricação e desobediência, em fatos apurados em Inquérito Policial sob sua presidência. A meu sentir, trata-se de ato ilegal, ilegítimo, esdrúxulo e odioso, contra o qual a categoria deveria se posicionar.

Inicialmente, é importante frisar que o Código de Processo Penal, em seu artigo 202 e seguintes trata da prova testemunhal como meio de prova, evidentemente, não excluindo ninguém desse dever inelutável: “toda pessoa poderá ser testemunha”.

Testemunhas, ensina com autoridade o Professor Francisco da Costa Tourinho Filho, em sua Obra Manual de Processo Penal, 5ª Edição, Editora Saraiva, “são terceiras pessoas que comparecem perante a Autoridade para externar-lhes suas percepções sensoriais extraprocessuais: o que viu, o que ouviu…” Para o Professor Júlio Fabbrini Mirabete, Processo Penal, 18ª edição, Editora Atlas, pág. 292, testemunha “é pessoa que, perante o juiz, declara o que sabe acerca dos fatos sobre os quais se litiga no processo penal”.

O Professor Mittermaier define a testemunha como sendo “o indivíduo chamado a depor segundo sua experiência pessoal, sobre a existência e a natureza de um fato”. Para Malatesta, o fundamento da prova testemunhal reside “na presunção de que os homens percebam e narrem a verdade, presunção fundada, por sua vez, na experiência geral da humanidade, a qual mostra como na realidade, e no maior número de casos, o homem é verídico”. O Livro dos Números 35, 30, assim define: “Todo homem que matar outro será morto, ouvidas as testemunhas; mas uma só testemunha não bastará para condenar um homem à morte.”

O juiz, tendo em vista o sistema adotado de apreciação de provas do livre convencimento, pode valorá-lo livremente à luz das demais provas produzidas. No antigo sistema da certeza legal ou da prova legal prevalecia o brocardo testis unus, testis nullus (voix dun, voix de nul, para os franceses), segundo o qual uma só testemunha não tem validade como prova.

Hodiernamente, admite-se até uma condenação com base em um único testemunho, desde que coerente com os demais meios probatórios colacionados aos autos. Por outro lado, muitas vezes vários testemunhos não são suficientes para uma sentença condenatória. Portanto, o que importa não é o número de testemunhas, mas a credibilidade do respectivo depoimento e o critério com que o julgador o aferirá.

Alguns doutrinadores costumam classificar a testemunha dentro da sistemática processual em referida, judicial, própria, imprópria ou instrumental, direta, indireta e informante, podendo prestar ou não o compromisso de dizer a verdade, dependendo da situação de cada pessoa.

Assim, a título exemplificativo, um Delegado de Polícia, de férias, ou de folga, ou por qualquer outra razão, fora de suas funções, presencia um fato em tese criminoso. Tudo bem. A Polícia é acionada, e o delegado de Polícia é arrolado como testemunha porque viu, ouviu, ou de qualquer modo tomou conhecimento do injusto penal. Perfeitamente cabível a hipótese da condição de testemunha.

Isto pode acontecer com qualquer pessoa, inclusive juízes, promotores, defensores públicos, advogados e outras autoridades. O que diferencia aqui é tão-somente como ocorre a intimação, ou diretamente ou com apresentação de depoimento escrito ou ainda com agendamento de dia e horário para a tomada do depoimento, tudo conforme moldura processual.

Na presidência do Inquérito Policial, o Delegado de Polícia cumpre, essencialmente, o seu mister com fincas no artigo 6º e seguintes do Código de Processo Penal, dirigindo-se ao local do crime, providenciando para que não alterem o estado e conservação das coisas, apreendendo objetos que tiverem relação com o fato, ouvindo o ofendido, interrogando o indiciado, procedendo a reconhecimento e acareações, ordenando a identificação datiloscópica na forma da legislação pertinente, sobretudo a Lei nº 12.037, de 2009, pugnando pelas prisões cautelares, interceptação telefônica, quebra de sigilo bancário, representação de medidas cautelares de sequestro e outras correlatas.

Portando, na sua tarefa investigatória, o delegado de polícia não é testemunha, e tudo que ele sabe é retratado num relatório minucioso, elaborado na forma do artigo 10, § 1º, do CPP, respondendo o seguinte questionário: o que, quando, onde, quem, nada mais que isso.

Como bem escreveu o brilhante Dr. Joaquim Francisco Neto e Silva, Chefe de Polícia Civil em Minas Gerais, em discurso de formatura dos novos delegados e escrivães em 07/07/21:

As unidades policiais civis são ambientes nos quais desaguam as misérias do cotidiano da violência. Vocês estarão defronte a situações dramáticas onde o valor da vida e a busca permanente pela Justiça devem tilintar em suas consciências. E como dizia Henry Louis Mencken a consciência “é aquela voz interior que nos adverte de que alguém pode estar a olhar.” Por isso, vivam uma práxis que os conduzam com a consciência do dever cumprido! Cultivem o fascínio pela verdade, desvelando, desnudando e descortinando crimes. Para o alcance do sucesso, utilizem técnica, ciência e arte. Procedam com equilíbrio, com poder e com austeridade. Eis a magnitude da função investigativa que não apenas inspira filmes, romances, novelas, mas que também, de forma peculiar, produz conhecimentos acerca de cenários de violência e de criminalidade para o melhor desenvolvimento social e econômico de um povo.

Agora imaginamos um juiz de Direito que, ao analisar todo conjunto probatório, resolve absolver o réu das acusações, com fulcro no artigo 386, inciso IV, do CPP, por não existir prova de ter concorrido para a infração penal.

Inconformado com a decisão do juiz “a quo”, o Ministério Púbico recorre, mas a defesa, para sustentar a tese absolutória, entende por bem arrolar o juiz, que prolatou a sentença absolutória, como testemunha. Seria cabível tal posição?

Evidentemente, que neste caso, o juiz prolator da sentença, muito embora tivesse tomando conhecimento de todos os fatos, não poderá servir de testemunha. Mas agora o juiz condena e a defesa recorre. Pode o Ministério Público arrolar o juiz como testemunha como forma de manter a decisão?

Assim é o caso do Delegado. Tudo que ele sabe, tudo aquilo que ele tomou conhecimento deverá ser retratado no relatório final, fazendo um juízo utilitário acerca do que ficou provado nos autos, indiciando ou não o investigado. Essa é a função do Delegado de Polícia, que não pode ser considerado testemunha quando preside um Inquérito Policial. Pensar diferente é atropelar a inteligência jurídica. A antiga Súmula 23, publicada em 07, 11 e 12/03 de 1997, segundo a qual “é válido o depoimento prestado por autoridade policial no âmbito do Processo Penal, se coerente e não infirmado por outros elementos de prova…”, não mais subsiste, mesmo porque Delegado de Polícia é ator principal do enredo investigatório, cuja função primordial é condensar as provas num caderno investigatório, chamado Inquérito Policial.

Por derradeiro, é de bom alvitre afirmar que um forte policial não acusa, não defende e não julga, como enfatiza a jurista Marta Saad, em sua obra “o direito de defesa no inquérito policial”. E assim, não custa nada lembrar que a principal função do Delegado de polícia na presidência do Inquérito Policial é conduzir com ética, equilíbrio e esmero o direcionamento das investigações e apresentar ao sistema de justiça a reprodução histórica dos fatos com máxima fidelidade, jamais acusando ninguém, nem absolvendo, devendo ficar de fora da arquibancada das paixões policromas, sendo, portanto, elo social, porta-voz da isenção e primeiro juiz natural da causa quando os fatos ainda estão em trepidação, com o abalo do sentimento social, quando ainda estão a efervescer as comunicações nas redes sociais, nos grupos de informações, nos juízos apriorísticos dos históricos policiais, e assim, deve o delegado de polícia não deixar a balança pender para nenhum dos lados, deve ele constituir ponto de razão e instrumento de justiça social, jamais figurando-se como testemunha quando da presidência das investigações, quando na verdade, seu relato é apenas e mera repetição do que fez constar no bojo do caderno reprodutor das misérias e incongruências sociais.

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