Tempos de Barbárie

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José Carlos Freire
Professor na UFVJM, Campus de Teófilo Otoni/MG

A partir da expansão da televisão nos anos 1980 e 1990 se consolidaram os programas de página policial no meio do dia e à tardinha. Eram comuns as chamadas impactantes, a repetição de cenas de assalto e acidentes. Com o avanço da tecnologia foi possível, inclusive, a filmagem de perseguições policiais ao vivo. Nos tempos atuais, no entanto, as manchetes dessa natureza se espalharam por todo o telejornal, pelo rádio e redes sociais, em qualquer momento do dia e da noite. Assassinatos, extermínios, linchamentos, abusos contra jovens negros e mulheres, toda forma de absurdos que embrulham o estômago de qualquer pessoa com o mínimo de bom senso. Facilmente poderíamos pensar que em nossos dias a barbárie aumentou. É verdade, mas não toda ela.

É sempre prudente ir em busca do que há por trás das palavras. O termo “bárbaro” remonta à antiguidade e define, em sua raiz, o que os gregos consideravam como estrangeiro ou forasteiro. Esse sentido foi assimilado pelos romanos que consideravam como bárbaros os não pertencentes ao império e, sobretudo, aqueles que o ameaçavam. Desse modo, o termo foi gradativamente se tornando sinônimo de selvagem, cruel, atrasado. Formou-se, então, um binômio: barbárie e civilização, sendo o primeiro ligado à desordem e o segundo à ordem social.

Recordemos, no entanto, que, via de regra, o bárbaro é sempre identificado por outro sujeito. Ou seja, é um grupo social, império ou país que rotula outro povo como tal. Assim foram, por exemplo, os povos originários de nossas terras identificados pela colonização. Eles não disseram: “Somos bárbaros!”. Isso é relevante por ser tênue a linha que separa civilização e barbárie. O que de um lado é visto como progresso, de outro é destruição. Pergunte-se a um país invadido por outro de maior poder militar quem é o bárbaro. Isso vale especialmente para os últimos séculos com seu grande avanço técnico.

Foi por essa via de análise crítica da sociedade que, ao longo do século XX, firmou-se a noção de barbárie associada aos efeitos do capitalismo. Esse modo de vida e de produção que se forjou intimamente ligado à ideia de liberdade foi se mostrando perverso e destrutivo ao longo dos últimos quatrocentos anos. Como bem aponta o filósofo brasileiro Marildo Menegat, estudioso do tema da barbárie, ao longo do século passado foi possível visualizar momentos de atrocidades intercalados de outros em que a evolução e a paz social pareciam definitivos. Um recorte apontado pelo autor é a alternância da etapa terrível das duas grandes guerras, entre a 1914 e 1945, para os gloriosos anos de 1945 até a metade dos anos 1970. Depois disso novo período de crise se impôs, com uma nova regressão à barbárie.

É exatamente aí que surge uma pedra no meio do caminho, na perspectiva do autor. Não é correto, segundo ele, imaginar que a alternância entre barbárie e evolução seja uma lei natural. Se fosse, restaria esperar pela superação dos conflitos sociais e geopolíticos das últimas décadas por uma nova era de paz e prosperidade. Para Menegat, a atual crise do capitalismo é estrutural e permanente. Após quatro séculos de predominância, a sociedade burguesa dá sinais evidentes de esgotamento. Entre eles poderíamos citar dois: o desemprego estrutural que mantém à margem da vida social uma crescente parcela da população mundial desde os anos 1970 e o colapso ambiental que se tornou mais evidente nos últimos anos. Na ordem capitalista não há espaço para esse contingente sobrante de miseráveis que aumenta a cada dia e muito menos para a apregoada vida sustentável do planeta. A continuar como vamos, teremos uma catástrofe ambiental permeada de imprevisíveis guerras civis ainda mais intensas que as atuais.

Parece ser essa a chave apropriada de leitura dos eventos de violência que ocupam o noticiário de rádio, televisão e internet todos os dias. Eles não resultam de uma mera decisão de indivíduos que, de repente, tornam-se violentos. É mais apropriado entendê-los como fruto de processos sociais. A propósito, é evidente também nas últimas décadas a expansão do sistema prisional, aspecto que Menegat, em diálogo com outros autores, estudou com acuidade. As guerras entre grupos do tráfico em bairros de periferia, somadas às repressivas operações policiais, amplificam ainda mais os homicídios e, consequentemente, o número de presos, grande parte sem a devida assistência da justiça institucional. Em termos mais simples: uma bomba relógio.

Como já foi sugerido em outros textos desta coluna, é preciso analisar fenômenos sociais contemporâneos escapando-se de dois extremos: um, segundo o qual “tudo foi sempre assim”, outro que diz “tudo é novo”. As práticas de violência de hoje têm elementos novos, próprios do nosso tempo, mas também estão em continuidade com a história. No caso brasileiro há um agravante: vivemos a crise do sistema capitalista como qualquer país, mas adicionamos a isso as marcas de nosso passado colonial e escravista. Aí a nossa fatura se fecha: crise do capitalismo mundial mais um passado de violência que permanece.

São tempos, portanto, de uma complexa trama sócio-política e econômica que exige uma urgente reflexão sobre o futuro. Sem freio à barbárie como vamos indo nosso horizonte é nebuloso, tanto em termos estruturais como no cotidiano mais imediato. Em diversos países essa encruzilhada se mostra mais evidente em períodos eleitorais nos quais dois ou três cenários se descortinam: no primeiro deles, que nem sempre ganha relevância nas campanhas e nos votos, estão as propostas de enfrentamento contundente à barbárie, o que se configura, necessariamente, como uma bandeira anticapitalista; no segundo cenário se apresentam a defesa dos direitos fundamentais e as políticas sociais como caminho, aquilo que Menegat, analisando o caso brasileiro do início deste século, bem chamou de “gestão social da barbárie”; no terceiro cenário, mais difuso e em geral enviesado por discursos de alta carga ideológica se entrevê o avanço da catástrofe social. O primeiro, freio de emergência; o segundo, tentativas de administração; o terceiro, pé no acelerador.

Pelo fato de o Brasil estar em período eleitoral em 2022, esse deveria ser o grau de seriedade e profundidade de nossas discussões. O que temos feito? O que faremos? Cada homicídio absurdo no noticiário, cada ação gratuita de violência, cada chacina em periferias, cada ato de intolerância, tudo isso deveria nos fazer pensar sobre que país ainda é possível constituir, pisando no freio ou ao menos tentando administrar uma mínima civilidade, já que a barbárie impõe uma urgência. O relógio da história continua girando e sinais do abismo se tornam cada vez mais visíveis

Contato: freire.jose@hotmail.com

Ilustração: Vinícius Figueiredo

1 COMENTÁRIO

  1. Texto brilhante de grande análise reflexiva da realidade que me faz lembrar de algo que minha mãe com 85 anos repete sempre, principalmente depois de assistir aos trágicos noticiários diários: “aonde vamos parar com tanta notícia ruim, esses políticos não fazem nada para melhorar o mundo, só morte e violência”.

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