Em uma velha lenda que atravessa culturas diversas e com toques regionais distintos, o Diabo, pai da mentira, oferece o sucesso, a fama e tudo mais a quem se dispuser a lhe entregar, ao fim da jornada, a sua alma. Na sociedade em que vivemos, a cada conexão que realizamos com um dispositivo, do computador ao celular, parece que negociamos algo semelhante: teremos acesso a tudo que quisermos, bastando dar nossa vida em troca. A diferença em relação à lenda é que, no nosso caso, a vida já é entregue no momento do pacto.
É um dilema. Não há vida fora das redes; dentro delas também não. Causaria um espanto considerável a um viajante do tempo que nos chegasse do passado e se deparasse com nossas “páginas pessoais”, sem contar o uso indiscriminado de “avatares”. Como vocês podem ser tantas coisas e tantas pessoas diversas ao mesmo tempo? Seria a provável primeira pergunta.
Esse estado de coisas tem a ver com tecnologia e também com lucro. Nossos dados valem dinheiro. Primeiro, nós os oferecemos. Depois eles se cruzam com outros dados, formando um acervo gigantesco que, cortado por algoritmos, geram novos dados. Estes nos chegarão na forma de oferta de produtos por meio daquele mesmo dispositivo onde nos foram solicitados os componentes mais valiosos que um ser humano hoje pode dispor: seus dados. Um círculo assombroso, porém, fascinante.
O filósofo sul-coreano Byung-Chul Han está entre as pessoas que vêm se esforçando nos últimos anos para entender essa gigantesca engrenagem. É um leitor atento de Michel Foucault, que se notabilizou por estudar a sociedade moderna organizada a partir do “regime disciplinar”, o modo de vida engendrado pelo capitalismo industrial que nos destinou a uma exploração dos corpos e das energias, cujo elemento da vigilância é crucial.
O sul-coreano dá um passo adiante. Para Han, a exploração continua, mas mudou a forma. Na sociedade tecnológica atual vigora o “regime de informação”, isto é, a exploração dos dados. Nesse sentido, a dominação não se dá exclusivamente pela posse dos meios de produção, mas pelo acesso à informação. Esta é usada para uma vigilância muito mais profunda: não mais um sistema opressivo que controla os corpos, mas uma autovigilância. Ou seja: pelo processamento de informações por algoritmos e inteligência artificial há um controle do comportamento que, embora imposto de fora, é compreendido pelos sujeitos como expressão de sua liberdade. Ainda é forca, mas temos a ilusão de poder escolher a corda.
Han não titubeia ao definir essa modalidade de capitalismo da informação como a degradação dos seres humanos em gado, em animais de consumo. Seguramos os celulares como na Idade Média segurava-se o rosário, como busca da salvação. Se na etapa anterior do capitalismo industrial o humano se subjugava como máquina, como peça de trabalho, agora, no capitalismo da informação, assentado sobre a ideia sedutora da comunicação, ele se entrega ao mesmo tempo em que se entende como livre e criativo. Ele participa como empreendedor da lógica que suga sua existência. É vítima e carrasco de si mesmo.
Outro elemento é que no regime disciplinar imperava um anonimato, a anulação dos indivíduos. No regime de informação ocorre o contrário: a exposição de si em redes abertas. A visibilidade é o fator determinante: quanto mais visível, mais controlável. Tudo por um “like”, uma curtida. No regime disciplinar não interessava o indivíduo, mas sua soma no jogo da produção; no regime da informação interessam os perfis pessoais: as pessoas se desnudam por uma necessidade assimilada. É preciso que tudo esteja disponível. As informações são livres, enquanto as pessoas – achando-se livres – estão presas às informações. Para usar o termo do filósofo sul-coreano: estamos em um presídio digital.
Há ainda outro aspecto importante. Na sociedade da informação ocorre uma crise da verdade. Não se trata apenas de uma inversão entre o que é verdadeiro e o que é mentira, mas sim de algo ainda mais perverso: vivemos uma indistinção entre verdade e mentira. Há uma espécie de autonomia das informações em relação a fatos. O que é divulgado nas redes sociais não precisa ter um correspondente real. Basta a propagação.
Isso nos leva a uma conclusão bastante preocupante: se as informações falsas não precisam de nada que corresponda a elas, torna-se difícil combatê-las com a verdade. As informações ganham vida própria, valendo-se por si mesmas. É o império das famosas “fake news”. Produtos são comprados, políticos são eleitos, guerras são travadas com base no absoluto vazio.
O que fazer diante de um quadro em que a democracia se corrompe numa “infocracia”? Não mais o governo do povo, mas dos dados? Mas que dados? De quem e manipulados por quem? Seria equivocado compreender a discussão de Byung-Chul Han apartada da crítica ao capitalismo, aspecto que norteou o pensamento crítico desde o século XIX. O fato de que não mais o algoz da fábrica simbolize o controle e sim o dispositivo que se carrega no bolso não indica que se tenha afrouxado a exploração. Ao contrário, ela se acentuou. Agora não mais somos, cada pessoa, mercadoria: nossas informações todas se mercantilizaram.
O diagnóstico de Han, por mais desolador que se mostre, é necessário e urgente. Como recolocar a verdade em seu posto de referência? Como revalorizar o indivíduo em sua concretude e não apenas seu perfil virtual? Como tornar os dispositivos, meras ferramentas que nos auxiliem a viver e não mecanismos de controle de nossa vida? Certamente não será por aumento de informações. Elas já transbordam. Talvez precisemos de menos dados, menos exposição, menos perfis, menos contatos. Em lugar disso, mais humanidade, mais história, mais vivências, mais amigos. A tela não é o mundo, apenas uma frágil representação dele.
Byung-Chul Han chega a falar de uma necessária humanização do capitalismo e se mostra entusiasta da ideia atual de sustentabilidade. Não tenho as mesmas esperanças. Para que se repense o capitalismo da informação talvez precisemos repensar tudo. Seja como for, tomar consciência de que vivemos sob uma infocracia é um passo fundamental. Somos mais que “dados”; e esse dado é inegociável.