A pandemia e a incerteza sobre o futuro

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José Carlos Freire
Mestre em Filosofia pela Faculdade São Bento/ SP. Professor na UFVJM, campus de Teófilo Otoni

Há um texto célebre na história do pensamento universal que trata sobre o tempo. Seu autor é Agostinho de Hipona, filósofo de origem africana conhecido como Santo Agostinho, que viveu entre os anos 354 e 430 da nossa era.

Com intuito de levar seus leitores a refletir sobre a vida e ajudá-los a estabelecer o que deve ser prioritário nas ações cotidianas, Agostinho propõe uma profunda reflexão sobre o tempo, tendo como referência os valores cristãos. Para o filósofo, não existe apenas um tempo, mas três! Aquilo que entendemos como “tempo” é, na verdade, um composto de passado, presente e futuro. Quanto ao passado a conclusão é evidente: ele já foi, ficou para trás, não volta mais. Sobre o futuro Agostinho é igualmente enfático: ainda não se concretizou, portanto, assim como o passado ele também não existe.

O que resta? O presente. Ainda assim com toda a sua fragilidade, já que consiste em um instante breve. Na verdade, o presente é uma transição contínua: o futuro, que não existia, passa a existir e, imediatamente, vira passado… Se observarmos uma simples caminhada teremos a imagem adequada do que o filósofo aponta: o passo seguinte se torna passado tão logo alternamos os pés um atrás do outro.

No entanto, o passado continua conosco. Assim como o futuro, de algum modo, também já se apresenta. O aparente paradoxo se resolve do seguinte modo: o passado aparece no presente como memória; o futuro, como projeção. São tempos da mente, sem existência material. O que existe de real é apenas o presente, no qual recordamos o que já

foi e projetamos na imaginação o que ainda não é. Uma possível definição de sabedoria seria esta: viver o tempo presente sem apego ao passado e diminuindo ao máximo a ansiedade quanto ao futuro. Um presente assim vivido possibilitaria a preparação para um bom futuro que, uma vez alcançado, transitaria ao passado de forma a nos deixar uma boa memória. Agostinho não está criando tal reflexão. Ela já existia em outras escolas filosóficas anteriores. E vai voltar muitas vezes ao longo da história. Será fundamental, por exemplo, no desenvolvimento da psicanálise.

Mas que importância teria tal reflexão, escrita há tantos séculos, num contexto como o nosso? Por que o tempo se torna um tema tão relevante diante da pandemia pelo coronavírus? A resposta mais direta, mesmo que não muito agradável é esta: situações de crise extrema evidenciam o óbvio, mas que insistimos em não ver em tempos de paz. Em outras palavras: não foi o coronavírus que tornou a vida frágil, passageira e incerta. Ela sempre foi assim. Viver, por si, já é um perigo constante, como lembrava Guimarães Rosa.

Caberia a todos nós, portanto, aproveitar o contexto de pandemia e o consequente isolamento para realizar um balanço da vida, eleger prioridades, abrir mão de futilidades, cultivando o essencial dessa aventura tão fugaz que é a existência. Estaríamos diante do que alguns chamam de janela de oportunidades: a vida nos oferecendo a chance de aperfeiçoamento pessoal e coletivo. Perfeito. Mas nem tanto.

Por dois motivos. Primeiramente, poucos de nós temos condições materiais que propiciem a vivência da pandemia como momento de reflexão. Basta como exemplo o fato de que muitos não tem como trabalhar em casa e, com isso, evitar maior chance de contaminação. A maioria é obrigada a se arriscar dia a dia pela sobrevivência. O correr da semana se tornou uma batalha constante e angustiante. O segundo motivo é mais grave: a reflexão de Agostinho não se aplica ao Brasil. Pelo menos não diretamente. E não é simplesmente porque viveu muito antes de nós existirmos como país. Explico-me melhor.

Tivéssemos superado as marcas históricas da herança colonial, aspectos como a desigualdade social gritante, violência ostensiva à população mais pobre, resquícios do escravismo, sistema educacional deficiente e tantos outros problemas seriam apenas assunto para a memória. Viveríamos um presente diferente e tais questões fariam parte do passado.

Ocorre que não é assim: o Brasil é um país em que o passado insiste em se reatualizar constantemente. Mudando um pouco os tempos de Agostinho, é como se em nosso país não existisse presente e nem futuro, apenas o passado revisitado. Condições de vida de antes se repetem; doenças antiquíssimas reaparecem; práticas políticas que imaginamos superadas ressurgem. Os exemplos seriam inumeráveis.

Não me parece que o problema esteja na formulação feita por Agostinho e sim na realidade difícil de nosso país. Oxalá pudéssemos passar pela pandemia com segurança e, com isso, poder refletir sobre seu sentido em nossas vidas. Quem sabe numa situação futura. Por agora, é um salve-se quem puder. Repetimos a velha prática de correr atrás do prejuízo, evitar o tristemente terrível para garantir que se dê “apenas” o terrível. E vamos tomando com naturalidade o número de milhares de mortos que se avoluma. A tal ponto que cem mortos a menos, de um dia para o outro, passa a ser motivo de consolação.

De tragédia em tragédia, vamos improvisando uma vida nacional na qual elementos tão importantes como o bem estar da população, o cuidado com os recursos naturais, segurança alimentar, planejamento econômico subordinado à vida digna como valor, garantia do emprego e da moradia decentes e tantas tarefas que deveriam estar na ordem do dia passam para o segundo plano. Em primeiro lugar os velhos interesses, velhos arranjos, velhas estruturas de poder. E a cada dia novo remendo no pano que se rasga. Nesta lógica do mal menor, não há projeção sobre o futuro que possa ser feita. Ele está interditado. O presente se consome todo na exaustiva luta contra os fantasmas do passado.

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