Recentemente reassisti ao documentário Maioria Absoluta (Leon Hirszman, 1964). O curta-metragem apresenta a situação da população pobre brasileira articulando a estrutura agrária e o analfabetismo. Os depoimentos de camponeses, as tomadas de câmera destacando os rostos sofridos, a narrativa feita pelo poeta Ferreira Gullar, os dados estatísticos da miséria, tudo no filme nos impacta e provoca.
É uma daquelas pérolas do Cinema Novo na sua primeira fase, pré-Golpe de 1964, onde a arte alcança um equilíbrio notável entre beleza estética e profundidade temática. O narrador termina por nos recordar que o filme acaba, mas a nossa vida, fora da tela, continua, assim como a daquela população sem-terra, sem direitos, sem rumo. Era um cinema pensado como processo educativo, como experiência transformadora. São quase sessenta anos e tudo mudou muito. Mas a desigualdade social insiste em se manter, o que torna o documentário, incomodamente, atual.
Do ponto de vista estatístico é evidente que o quadro hoje é muito menos grave que naquele contexto. Num país de 80 milhões de pessoas à época, mais de 50% eram analfabetas, das quais 25 milhões sequer votavam. Hoje somos mais de 200 milhões e o analfabetismo, segundo dados dos últimos anos do IBGE, encontra-se entre 5 e 6%. Parece pouco, mas não é. Falamos de cerca de 10 milhões de pessoas com 15 anos ou mais que não sabem ler e escrever. A coisa se complica ainda mais se completamos esses dados com os do chamado analfabetismo funcional, que se refere à condição de quem, embora saiba reconhecer números e letras, não consegue compreender textos ou operações matemáticas. Pelos dados do INEP, nos anos recentes a média nacional fica na casa dos 18%, com algumas regiões superando os 25%.
O impacto dessa chaga brasileira – país no qual, como dizia Darcy Ribeiro a crise da educação não é uma crise, mas sim um programa – é enorme. Isso é trágico, para o campo da literatura, forma pela qual, bem lembrava Paulo Freire, completamos a leitura do mundo pela leitura de textos, histórias, fábulas. No nosso caso, para uma parte significativa da população nem a leitura do texto e nem a do mundo se efetivam. Fracassamos como civilização. Ou melhor, lembrando Darcy: o programa permanece um sucesso!
As pesquisas do Instituto Pró-Livro evidenciam isso. A edição de 2015 de “Retratos da Leitura no Brasil” mostrava que apenas 12% eram leitores de romances ou contos; 42% dos brasileiros afirmam não ler porque não compreende ou tem dificuldades para ler; 44% não leu nem mesmo um trecho de um livro. De lá pra cá os dados pioram, evidentemente, em razão da pandemia, cujos impactos educacionais e culturais são enormes.
No entanto, a maioria absoluta, para inverter a abordagem do documentário de Leon Hirszman, tem um dispositivo eletrônico nas mãos. Na vida de mais de 80% dos brasileiros, pelos dados recentes do mesmo IBGE, o celular está lá, a cumprir seu múltiplo papel de informar, educar e entreter. Com que conteúdo? Eis a questão. Com que autonomia de opinião por parte dos sujeitos que são bombardeados por todo tipo de informação? Eis o nó. Se a televisão era o grande vilão há algumas décadas com seu fascínio e manipulação de corações e mentes, hoje ela reduziu de tamanho, ficou mais potente e foi parar no bolso das pessoas.
Antônio Candido, grande estudioso da sociedade e da literatura no Brasil, defendia que ela, a literatura, é um direito. A obviedade aparente de tal posição é contrastada pela realidade brasileira, no qual predominou, por longos séculos, baixíssimo nível de acesso a bens culturais como a literatura. E as causas são muitas: do ponto de vista estrutural, a debilidade cultural de países de passado colonial se sustenta na falta de meios de difusão como editoras, bibliotecas, revistas, jornais etc. Tais meios existem, de fato, sobretudo após os primeiros esboços de nação pós-independência. Mas não são acessíveis à maioria.
Do ponto de vista da formação social brasileira a coisa ainda fica pior, posto que as classes que nos comandam desde o Império nunca quiseram, de fato, um país, mas sim um parque agrícola-industrial de produção de riquezas, quase sempre para fins de exportação; projeto esse no qual o fomento à vida cultural sequer se configura como relevante.
Nas trilhas de Antônio Candido, saltamos, por assim dizer, de uma fase de predomínio do analfabetismo em nosso passado colonial para a era moderna dos meios de comunicação de massa, em especial a televisão – hoje superada, em grande medida, pelos dispositivos de celulares e redes sociais. Ou seja, não houve a devida mediação que caberia a um sistema educacional organizado e a uma democratização do acesso à leitura e às artes. Manteve-se, portanto, um fosso que separa a maioria da população e uma pequena elite cultural.
É certo que mudanças houve significativas, sobretudo na expansão do ensino. Mas ainda é pouco. Pelos dados mais recentes, pouco mais da metade da população acima de 25 anos completou o ensino básico; o funil permanece, já que a evasão no ensino médio é grande e o total que completa o ensino superior não chega a 20%. A isso se junta o já referido analfabetismo funcional. Era boa a formulação de Monteiro Lobato segundo a qual um país se faz de pessoas e livros; nós os temos, o difícil é juntá-los.
Enquanto permanecemos um país da gambiarra, que não universaliza os direitos sociais, a leitura fica à espera, sequestrada. Com isso, recordando uma vez mais Antônio Candido, permanece também atrofiada a função da literatura como forma de conhecimento e o seu papel humanizador de organização de significado do mundo e da vida, de expressão e canalização das emoções de indivíduos e grupos. Tudo isso fica adiado para quando, de fato, formos um povo que lê.
Por ora, formamo-nos por memes, áudios e vídeos questionáveis que nos chegam a toda hora, mensagens vagas que pouco distinguem verdade e falsidade – repetindo sempre, refletindo pouco. Fosse outro o nosso processo histórico educativo-cultural tais fenômenos não seriam problema, pois teríamos elementos consolidados para questioná-los e selecionar o que vale, e, o que não vale. A prática de leitura de romances, poesias e contos não salvaria o país, por certo, mas nos ajudaria a criar bagagem mínima. Na ausência de leitura, a maioria absoluta segue, para usar uma expressão de nossos dias, sem filtro.