A gente se acostuma

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José Carlos Freire
Mestre em Filosofia pela Faculdade São Bento/SP.
Professor na UFVJM, campus de Teófilo Otoni

Recentemente correu no noticiário a informação de que houve, em plena pandemia do coronavírus, aumento da fortuna dos brasileiros que possuem mais de um bilhão em patrimônio. A mesma sorte dos ditos bilionários foi verificada nos demais países da América Latina, o que confirma o cenário de meses anteriores em países como os Estados Unidos. Os dados são da Forbes, revista de negócios que publica anualmente a lista de bilionários no mundo, classificados de acordo com suas fortunas. Sim. Existe uma revista especializada no assunto. O que já é notável.

Soube da notícia enquanto ouvia um programa matinal de rádio. Como de costume, as manchetes vão se sobrepondo de tal maneira que assuntos de enorme relevância e outros corriqueiros formem um mosaico. Assim é também o noticiário televisivo. No meu caso, o que veio depois da notícia bombástica do aumento das fortunas dos bilionários foi a previsão do tempo…

Naturalização. Esse é o termo. É comum sua aplicação aos processos sociais que de tanto se repetirem passam a ser vistos como naturais. Então, assim como a chuva que molha, o vento que sopra, e a fumaça que sobe também aspectos da vida social como a desigualdade econômica passam a ser concebidos como inevitáveis. Um bom indicativo de que tal processo se tenha dado está no senso comum, ou seja, aquela visão geral que vai se cristalizando no cotidiano, nas conversas e nas mensagens trocadas. A formulação varia, mas o seu conteúdo básico é este: “É assim mesmo!”. Por vezes, há um reforço histórico no argumento: “Desde que o mundo é mundo foi assim!”.

Entre as dezenas de poemas recitados pelo grande Antonio Abujamra no programa Provocação, não me esqueço de um que me marcou de forma especial. Trata-se de “Eu sei, mas não devia”, de Marina Colasanti. Convido o leitor, terminada a leitura desta crônica, pela qual desde já agradeço imensamente, a fazer uma busca rápida aí no seu navegador. Digite: “Abujamra a gente se acostuma vídeo”. O poema é brilhante para ser lido, mas quando recitado com aquela propriedade fica soberbo.

Num chamado àquilo que poderíamos nomear de “desnaturalização”, o poema nos desloca do senso comum para o campo da reflexão. Não sei como é para você que já o leu ou você que o lerá daqui a pouco, mas a minha experiência é sempre inquietante – ouvindo-o pelo Abujamra eu diria que é assustadora. Volto a ele com sentimento duplo: necessito, mas tenho medo. É verdade! A gente se acostuma demais. Com tudo o que é mais desumanizador e perverso, com tudo o que é aberrante.

Alguém poderia se contrapor, de forma naturalizada por sinal. Sempre houve pobreza, riqueza, desigualdade etc. Não é verdade. São inúmeros os relatos de experiência ao longo da história, curtas ou mais duradoras, famosas ou quase desconhecidas, em que grupos sociais distintos e até mesmo povos inteiros experimentaram modos de vida coletivos, em que a lógica não consistia na abundância de uns sobre a miséria de outros e sim na vida digna de todos. Ou pelo menos na busca deste horizonte. E ainda que fosse apenas uma experiência isolada: ela seria suficiente para mostrar que a desigualdade econômica é um processo construído socialmente e não um fenômeno da natureza. É preciso, portanto, espantar essa ladainha que diuturnamente nos é imposta segundo a qual é natural que haja – numa mesma com unida de, cidade ou país – bilionários e miseráveis.

Mas de onde vem a normalidade com que é tratado o assunto? Como é possível que numa situação de pandemia em que a maioria dos que morrem são pobres e outros tantos milhões perdem empregos encaremos tamanha discrepância econômica de forma tão trivial? Como é possível que o jornalista passe, sem nenhum problema, da notícia do enriquecimento dos bilionários para a previsão do tempo? E o pior: como podemos ouvir esse procedimento jornalístico sem estranhamento?

Perguntas difíceis exigem respostas complexas. Não me proponho a uma tarefa tão grande. Queria apenas apontar um aspecto que, junto a outros tantos, podem nos ajudar a desenrolar esse novelo. Falo do caráter mágico com que a vida social foi revestida há pelo menos duzentos anos, o que tem a ver não apenas com a lógica de negócios própria da sociedade de mercado, mas com o verniz com que fomos tingindo esta sociedade. Dito de maneira mais direta: para que haja bilionários, é necessário que haja miseráveis. É um jogo de forças. Para que se diminua a miséria, é preciso que o mesmo se dê com a fortuna exorbitante. Simples assim. Qualquer planejamento econômico decente para um país, estado ou município passaria por reduzir os extremos. E daí seguir até o limite do equilíbrio que for desejado e construído pelos cidadãos.

Ocorre que não é esta a compreensão predominante em nossos tempos, mas outra: a da conciliação de fortunas cada vez maiores de poucos com a miséria cada vez mais cruel de muitos. Evidentemente, para os bilionários que já entraram ou almejam entrar para a lista da revista Forbes a posição é confortável. Mas nem tanto, porque os miseráveis podem vir a reclamar. E como evitá-lo? É preciso propagar a noção de que tudo isso seja natural. E contra a natureza não se luta, aprende-se a conviver. Uma grandiosa engenharia de ideias e valores que tentam justificar o injustificável.

As coisas poderiam ser de outro modo? Talvez. Certo é que uma das condições seria o questionamento de nossas práticas e convicções tão cristalizadas. Como no poema de Marina Colasanti. Por isso, reforço o convite: corra lá leitor! Ouça-o na voz de Abujamra. Eu o farei agora mesmo. Antes que me acostume ainda mais.

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