O bilhete

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José Carlos Freire
Professor na UFVJM, Campus de Teófilo Otoni/MG

8 horas. Estação Santa Cruz. Um vai-e-vem incansável de pessoas. A entrevista marcada para 8h30. Devia ter chegado antes, mas o trânsito… Do Terminal Capelinha até ali foi uma longa viagem. Era descer depressa e pegar o metrô para Vila Mariana. Bolsas se enroscando na escada, o povo embolado, esbarrões. Entrava, enfim, na estação. Já via a catraca. Daria tempo! Suspirou.

Mas aquele papel… Chamou-lhe a atenção. Ele o viu cair da bolsa da senhora de blusa azul que saia. Um instante cruel de dúvida. Parecia um bilhete de passagem. Pegar o papel e correr atrás da mulher podia lhe atrasar. Mas não o fazer parecia desonestidade. Se ninguém mais tivesse visto? Ele sabia o que era ter dinheiro contado para transporte. Ele tinha seus valores.

A pior dúvida é a que não permite tempo para se pensar. Relutante, pegou o papel. Olhou depressa: era mesmo uma passagem de ônibus, o que lhe confirmou o acerto da decisão. E se a mulher estivesse indo à rodoviária para embarcar? Uma viagem de emergência para o interior?

Mas havia a entrevista de emprego… Dobrou o papel na mão. Um frio lhe atravessou a espinha. Aquele trabalho era a sua chance de sair da lama. Porteiro de prédio por quinze anos. Agora desempregado. Tinha que dar certo!

Ele via a senhora, mas não podia alcançá-la. Multidão inversa, escada rolante. Gritar ele podia, mas não devia. Guardas de estação não gostam disso. Acelerou o passo o quanto pode. Depois de uma maratona estafante a alcançou. Finalmente!

8 horas. Estação Santa Cruz. Ela sai do vagão com sua bolsa. Segue a andar com tranquilidade. Mas em São Paulo pode alguém andar tranquilo? Que seja. A escada rolante com sua lentidão não lhe incomoda tanto. Agrada-lhe estar de volta. A passagem que havia colocado no meio do livro cai, no esbarrar de bolsas e pessoas.

Do nada, surge aquele homem, de traços simples. Sua afobação a assustou demais da conta. O papel que ele traz na mão ela nem reparou, evitando-o como a um pedinte. A insistência dele a perturba. Parecia querer lhe tocar. Apressou o passo. Até que ele, já com ares de desespero, tenta lhe enfiar a mão no bolso da blusa. Um grito! O homem foge aos empurrões entre as pessoas curiosas. Os guardas…

8h05. Ele corre por entre carros, motos e gente até sair na Rua Borges Lagoa. Não tinha sido boa ideia tentar enfiar a bendita passagem no bolso da mulher. O que ele podia fazer? Ele tentou explicar, mas ela o ignorou. Sua boa ação havia se transformado, de repente, em ameaça. Ladrão! A palavra ainda ecoava nos seus ouvidos. Contornou o quarteirão. Parou para respirar um pouco. Tudo aparentemente normal. Volta a estação evitando ser visto pelos seguranças. Na multidão, um homem não é ninguém.

8h10. O primeiro trem passa lotado. Ele empurra. É empurrado. A camisa já apresenta marcas de suor, o que lhe dá um aspecto desfavorável. O segundo trem ele pega.

8h15. Depois de ser ouvida pelos seguranças e liberada, ela entra no prédio que fica a um quarteirão da estação. Quando comenta sobre a tentativa de assalto, o porteiro lhe é solidário. Ele maldiz esse tipo de gente que vive a roubar pessoas de bem.

8h20. O trem ainda parado, entre Santa Cruz e Vila Mariana. Problemas na linha vermelha. “Os trens circulam com velocidade reduzida e maior tempo de parada…”. Devia ter ido a pé! Que raiva! De que adiantava essa ideia agora…

8h25. Ela toma seu banho, após beijar as filhas. O cansaço da viagem lhe deixa aos poucos.

8h30. Ele corre desesperadamente com o endereço na mão, amassado, molhado pelo suor. Maldito metrô! Maldita mulher! Confunde-se com o número do prédio. Para, volta, segue. É lá!

8h32. Finalmente chega o local, mas está fechado. Bate com insistência. Voz seca ao interfone lhe revela a fatalidade: os candidatos foram chamados pontualmente no horário. Era o primeiro item da avaliação.

8h40. Desolado. Segue passo lento de volta ao metrô. É ódio o que sente? Ele não sabe dizer. Faltam-lhe as forças. Ele também não sabe que para a vaga de emprego será contratado alguém com menos experiência; e que ele, entre todos, era o melhor candidato. Também não sabe o que o futuro lhe reserva. Que oscilará entre o desemprego e o trabalho informal pelos próximos sete anos. Até pressente, mas não sabe. Não sabe que será preso por homicídio de uma jovem no primeiro assalto que inauguraria sua curta carreira criminal.

8h45. Ela toma café, com as filhas. Desconhece a teia de acontecimentos. Ninguém é capaz de conhecê-la. Não sabe que dali a alguns anos terá uma das jovens morta num assalto. Não reconhecerá aquele homem, mesmo sendo na saída do mesmo metrô Santa Cruz. Naquele domingo à noite que, de inábil e nervoso, o ladrão disparará a arma sem querer. Também não entenderá aquele olhar que ele lhe lançará, misto de desespero e ódio, como se a reconhecesse de outra vida. Um ódio só não tão grande como o que ela terá dele, para sempre.

9h15. Toca o telefone. É o serviço de informações do metrô. Um bilhete de passagem com os dados dela na ficha de identificação havia sido entregue, há pouco, por um senhor na administração. A data do dia anterior, com saída de Belo Horizonte e chegada a São Paulo. Quem teria recolhido esse bilhete usado se nem ela se lembrava mais? Agradeceu ao serviço e pediu que jogassem fora o papel. Ele não tinha nenhuma importância.

Contato: freire.jose@hotmail.com

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