E se voltássemos a escrever cartas?

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José Carlos Freire – Mestre em Filosofia pela Faculdade São Bento/ SP. Professor na UFVJM, campus de Teófilo Otoni

Há dias tenho pensado em cartas. Sim, aquele gênero textual tão antigo. O leitor mais jovem pode achar engraçado ou mesmo um sinal de saudosismo. Diante de tantas formas mais rápidas e eficientes de transmissão de mensagens que sentido há em falar de cartas? Até mesmo o nosso velho carteiro já quase não as entrega mais!

O estranhamento é compreensível. Temos encurtado cada vez mais a comunicação, as frases, as palavras. As coisas mudam. A pergunta do título tem algo de retórico: não é possível voltar no tempo. Mas pergunto: a mudança não teria feito desaparecer aspectos importantes que a carta continha? Não falo da eficiência – os símbolos e imagens hoje utilizados estão aí para provar que a mensagem passa, a informação chega. Falo do processo, do tempo que se gastava em conceber uma carta, por vezes um rascunho até chegar à escrita, o que supunha uma imersão afetiva. Depois, a ida ao correio, a espera pelo envio, a recepção e a leitura. Tudo isso imaginado, porque não havia código de rastreamento. Ao final, a expectativa da resposta ou do efeito causado pela mensagem. Eram dias ou até semanas entre o início e o final do ciclo de uma simples carta. Ocorria aquilo que Rubem Alves muito bem sintetizou: aquela folha de papel, ao ser lida, acabava por unir mãos que estavam distantes. O capricho dos enamorados em colocar uma pétala de flor ou então borrifar perfume no papel elevava essa união a um plano mágico.

Além das cartas pessoais, vale a pena lembrar das muitas modalidades de carta. Carta instrutiva, carta aberta, carta pública, carta à redação de jornais. Os exemplos seriam inúmeros. Públicas ou pessoais, sempre uma condição indispensável: reflexão, maturação do assunto pelo emissor, escolha das palavras. A carta como exercício de diálogo. Chamem-me antiquado, sem problemas, mas suspeito que o modo de comunicação rápido e urgente que hoje cultivamos, a impaciência com os “textões”, a incapacidade patente de suportar mais de três parágrafos, tudo isso indica um empobrecimento da arte comunicativa. O leitor que chegou até aqui já é, por sinal, um sobrevivente dessa onda avassaladora. É preciso compor uma comitiva de especialistas para dar conta do tema. Comunicadores, estudiosos da tecnologia, linguistas, pesquisadores do comportamento humano etc. Deixo aqui apenas indagações. E duas experiências, uma antiga e uma recente.

Não faz muito tempo um grande amigo fez algo inusitado. Escreveu uma carta à mão, foi ao correio, depositou e aguardou que o ciclo se realizasse, tal como antigamente. Dispondo de todos os recursos tecnológicos modernos, achou por bem que a mensagem deveria ser enviada por carta. Acompanhei de longe o processo e fiquei pensando: talvez não seja o caso de atribuir àquele velho gênero um valor elevado, mas sim de constatar que os nossos diversos meios de hoje nem sempre se mostram adequados. Como explicar a um adolescente empapuçado de aplicativos que, ao receber uma mensagem, não precisa responder imediatamente, podendo deixar para fazê-lo depois, com tempo para meditar e sondar os próprios sentimentos e aí saber o que deseja de fato dizer? Como lhe mostrar que a vida não se mede em números de caracteres e que – sim! – muitas vezes precisamos falar muito para que, carreando palavras, nós mesmos nos deparemos o com o que de fato queríamos dizer e no início não sabíamos?

A segunda experiência é de décadas passadas. Uma briga por coisas do cotidiano havia distanciado meu pai e seu irmão mais velho. Todos percebemos a amargura que aquela situação causava a ambos. Após alguns dias, meu pai resolveu escrever uma carta. Das coisas que fiz na vida esta é uma das que mais me dá orgulho: fui o responsável por levar uma mensagem que reaproximou dois irmãos. Um embaixador da paz com menos de dez anos naquele microcosmo rural. Aquela era uma situação em que a conversa pessoal estava interditada. A carta foi a única forma de quebrar a inimizade.

Como pensar situações semelhantes no nosso cotidiano tendo em vista os instrumentos dos quais hoje dispomos? Uma boa hipótese: damos novos significados! O correio eletrônico, o popular e-mail, teria substituído a carta; o áudio por aplicativo, o telefonema. Não sei se é tão simples assim. O pobre e-mail já parece obsoleto; o áudio não pode passar de trinta, quarenta segundos… A impressão que dá é que quanto mais ferramentas temos, menos falamos.

Não abusarei da paciência do leitor que até aqui se manteve firme. Encerro com a referência a Eduardo Galeano, grande escritor uruguaio cujos textos se parecem cartas escritas a cada um de nós. No “Livro dos Abraços”, em que recolhe pequenas histórias de partes distintas da América Latina e mesmo de outras regiões, Galeano narra o que se passou com um velho que morava num povoado nos arredores da cidade de Montevidéu. Criou-se a lenda de que ele havia juntado um grande tesouro em casa ao longo da vida. Certa feita, em uma de suas saídas para a cidade, a casa foi invadida por assaltantes que, após vasculhar sem sucesso os cômodos, só encontraram um pequeno baú de madeira, trancado a cadeado. Levaram-no e quando puderam finalmente abri-lo se depararam com o conteúdo: estava cheio de cartas. O tesouro eram as cartas de amor que o velhinho havia recebido ao longo da vida…

Fernando Pessoa dizia que as cartas de amor são ridículas. Mas mais ridículas seriam, para ele, as pessoas que nunca as escreveram. Se não há mais espaço para cartas, certamente ainda temos necessidade de falar para alguém do amor, da amizade, da afeição, da saudade que sentimos. A pergunta que fica é: como tratar de sentimentos tão grandiosos com tão poucos caracteres?

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