No final do segundo semestre de 2018 a turma do Serviço Social da UFVJM, como de costume ao término do curso, realizou a “Aula da saudade”, para a qual tive o prazer de ser convidado junto a outros(as) colegas professores(as). Já se tornara corriqueiro ver alunos e alunas completarem o ciclo que vai do ingresso no primeiro período à formatura, naquele e em outros cursos da Universidade. Mas aquela “aula” foi especial, porque seu conteúdo era um sentimento compartilhado. Foi um momento de reflexão importante para mim. Contei aos alunos(as) e colegas que quando termina um semestre letivo eu me despeço da sala vazia. Naquele breve instante após o encerramento da última avaliação e antes que a equipe da limpeza venha organizar a sala eu me silencio e contemplo as cadeiras, na tentativa de gravar os momentos vividos.
Faço a mesma coisa quando me mudo de casa. Após retirar os móveis, fica tudo calmo e dá até para ouvir o eco dos passos. As paredes parecem se alargar e a casa fica maior. Todas as imagens vividas em cada cômodo se sobrepõem como num filme. Por mais simples e corriqueiros que sejam os dias de aula de um semestre ou os acontecimentos triviais do cotidiano familiar, são momentos vividos, convividos, compartilhados. Fizeram parte de minha história. Encaro isso como forma de ganhar força para o próximo passo, a próxima casa, a próxima etapa da vida.
Mas isso é em tempos normais. Pensar sobre saudade em um contexto tão atípico como o nosso é diferente. Talvez você, leitor, compartilhe comigo da sensação estranha que esta pandemia vai deixando. Penso que seja mais que falta dos amigos, parentes, pessoas queridas. É uma espécie de vazio. Uma certeza incômoda de incompletude do encontro, de impossibilidade de afeto.
Carregamos todos nós, uns menos, outros mais, uma raiz ibérica, de onde costumam dizer que vem esse sentimento complexo que é a saudade. Ele é uma espécie de “sentimento-imã”, que agrega outros como a nostalgia, o pesar, a dor da perda, a vontade de voltar etc. Complicado explicar, na verdade, o que seja saudade. Prova disso é a dificuldade de se traduzir, segundo os linguistas, esse termo do português para outras línguas.
Para mim, esse sentimento lusitano se mistura com outras manifestações que nos compõem a identidade. A perda da terra de origem dos africanos para cá trazidos como escravos nos legou um buraco na alma, uma chaga que não se cura. Da mesma maneira os povos originários da América Latina, desterrados em sua própria terra, perderam sua raiz, sua simbiose com a natureza. Herdamos da colonização um apagamento, uma desmemória.
Então, entre os muitos lados do termo saudade, existe esse, mais sociológico. Mas há outros lados. O mais comum é o que remete às relações com pessoas queridas que vamos conhecendo pelo tortuoso caminho da vida. Esse aspecto da saudade é o que fez Álvaro de Campos assim se expressar em “Aniversário”, um poema cheio de lembranças: “No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, eu era feliz e ninguém estava morto […]”. E encerra o poema dizendo: “Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!”.
Nesse caso, a saudade está quase sempre associada em nosso imaginário, à solidão, àquela situação de fragilidade e abandono de um professor com a sala vazia ao final do semestre, da mãe que arruma o quarto do filho que partiu, do pai na plataforma que acena para a filha no ônibus. É assim que o grande compositor cubano, Pablo Milanés a define: “A solidão é um pássaro grande e multicolorido que já não tem asas para voar e a cada nova tentativa sente mais dor”.
Penso que a insensibilidade não seja novidade de nossos tempos. Sempre houve figuras públicas que propagaram absurdos, não se importando com o que causariam em quem os ouve. No contexto de hoje, ao invés de menosprezar ou ridicularizar a situação de pandemia, deveriam tais figuras se calar em respeito a todos que sofrem e se angustiam com a própria doença, o desemprego, a falta de grana, a perda de horizontes, a interrupção de sonhos. Se não isso, ao menos a dignidade de respeitar a memória dos que morreram em razão da pandemia e a dor dos seus parentes.
Tenhamos outra régua de medida. Aquela que compreende o sofrimento de uma pessoa como sofrimento da humanidade toda. Nesse caso, a saudade imensa que sentimos de parentes e de amigos nesta pandemia interminável pode ganhar outra dimensão: ela passa a ser assimilada com mais leveza. Olhando para quem perdeu pessoas da família ou amigos próximos, aqueles entre nós que fomos poupados dessa situação podemos dizer: “Não sei o quanto é sua dor, mas por sentir um pedacinho dela no meu dia a dia sou solidário a você”. Contra a insensibilidade, a empatia. Contra a imbecilidade, a compaixão.
Chico Buarque na antológica canção “Pedaço de mim” diz que a saudade é “como um barco
que aos poucos descreve um arco e evita atracar no cais”. Gosto dessa imagem. Mas acho também que a saudade é o vento que sopra as velas de nosso barquinho para frente, para outras águas, outros rios e outros mares.
Aos que ainda veremos, demore o quanto demorar, poderemos dizer o quanto fizeram falta. E será belo o encontro. Os que morreram e não podem mais compartilhar com seus entes a mesa e a conversa estarão juntos de outro modo: pela memória. A saudade, no fundo, indica mais a presença do que a ausência.