A felicidade

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José Carlos Freire – Professor da UFVJM, Campus de Teófilo Otoni/MG

As crianças adoram contar seus sonhos. E sua narrativa é rica em detalhes. Dá pra sentir sabores, ver as cores, ouvir os sons! Na minha casa isso é uma diversão. Outro dia Júlia veio com um sonho bacana. Era noite e por algum motivo ela só teria mais um dia de vida – os sonhos começam do nada e geralmente não vêm com explicações.  Então, como naquela antiga brincadeira do “o que você faria se tivesse apenas um dia?”, ela não titubeou: decidiu que queria brincar e tomar sorvete. Começou pelos jogos de tabuleiro em família, entre uma colherada e outra. Se não tivesse acordado certamente brincaria de outras coisas com amigas e pessoas queridas.

Ficamos papeando depois que ela contou o sonho. E eu pensei na felicidade, essa prima-irmã da sabedoria. Um indicativo de que essas duas foram alcançadas certamente seria esse: quando alguém, lançando mão da brincadeira do “o que você faria…” concluísse que suas vinte e quatro horas restantes seriam tais como as anteriores, ou seja, não precisaria correr atrás de nada que faltasse. Evidente que este é um propósito muito difícil de se alcançar. Sempre temos muita coisa que ainda queremos viver ou fazer.

Recordo-me do maravilhoso poema “Hospedaria” de Mário Quintana: “Esta vida é uma estranha hospedaria,/ de onde se parte quase sempre às tontas,/ pois nunca as nossas malas estão prontas/ e a nossa conta nunca está em dia.” Que definição sublime! Exatamente isso: a felicidade talvez seja aquela condição em que as malas já estão prontas e as contas, em dia. Em outras palavras: não há mais amarras, não há coisas pendentes, não há âncoras. O barco pode navegar suavemente. Fôssemos sensatos, viveríamos cada dia como o último. Mas sabemos que não basta nossa vontade. Há inúmeros fatores que interferem nesse jogo. Entre eles, dois pequenos detalhes: trabalho e sobrevivência.

Mas vou me restringir à nossa experiência pessoal. A história da filosofia no Ocidente pode nos ajudar a pensar sobre ela. De modo sucinto, há três grandes referenciais de felicidade em torno dos quais inúmeros pensadores se debruçaram por séculos. Um primeiro é o de pertencimento a uma coletividade. Os gregos não inventaram isso, mas é certo que o cultivaram de um modo muito peculiar. No período áureo das chamadas cidades-Estado gregas, exaltava-se a participação nas decisões coletivas em locais como Esparta, Tebas e Atenas. Deixando de lado as contradições do mundo grego, podemos dizer que esse ideal ficou marcado em nosso arquétipo de vida feliz: situar-se em um projeto coletivo, contribuir para um fim social, fazer parte de uma ordem maior que nos integre.

Um segundo ideal é próprio da longa era cristã, que cobriu mais de um milênio de hegemonia do lado de cá do globo. O sentido de pertencimento também está ali, afinal, estamos falando de religião que é, via de regra, um agrupamento em torno de uma crença. Mas a contribuição mais importante do cristianismo para nossa civilização em termos de referencial de felicidade foi outra: a de preparação para uma vida futura. A ideia de salvação, nesse caso entendida como situação desejada após a morte, povoou fortemente o imaginário social. Não é o caso de refletir aqui sobre os problemas que isso trouxe – e são muitos, mas sim de fincar mais um pilar dos nossos modelos de felicidade: algo que está além, lá na frente, em um estágio futuro. Restaria, no presente, preparar-se para ele, criar suas condições de realização quando chegar a hora.

O terceiro ideal desse esquema breve se encontra naquilo que se compreende como modernidade, isto é, o período do avanço científico, da formação dos países como hoje conhecemos, da aceleração da técnica, da noção de progresso. Mas é outra noção que nos interessa mais aqui: a de autonomia do indivíduo. Todas as fichas foram apostadas na esperança de liberdade. Um sujeito livre e emancipado, sem a vigilância das instituições, sem o cerceamento das autoridades. Tal qual os dois anteriores, esse ideal também mostrou inúmeras contradições. Mas o fato é que ele demarcou seu território: passou a compor também nosso arquétipo de felicidade.

Não se trata de indicar qual o melhor referencial, mas sim de compreender que os três nos atravessam o tempo todo. A depender da situação pessoal ou da conjuntura histórica um ou outro modelo de felicidade se impõe mais ou se articula com um segundo. Tal lógica, por vezes, nos dilacera ou nos deixa insatisfeitos: se pertencemos muito fortemente a algo, sentimos falta de liberdade; se nos tornamos muito autônomos e independentes, falta-nos a coletividade; se apostamos muito na preparação para a felicidade lá na frente, ficamos insatisfeitos por não experimentá-la minimamente agora; se investimos em um projeto de felicidade imediato, temos dúvida se o fazemos sozinhos ou em grupo. Enfim, a angústia segue. Tal estado de felicidade parece inatingível.

Não há resposta fácil para esse desafio. Mas há boas hipóteses. Uma delas está em buscar outros referenciais de felicidade que possam nos auxiliar. Isso, porém, fica para outra ocasião. Por ora, gostaria de encerrar retomando a provocação de Mário Quintana para me perguntar e para perguntar a você, caro leitor: como está sua “hospedaria”? Se você tiver um sonho igual ao de Júlia, em que precise escolher o que fazer na seu último dia, quais serão suas prioridades? O que você tem sido e feito é o que continuaria a ser e a fazer ou é provável que suas contas não estejam em dia?

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