Os limites

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José Carlos Freire – Professor da UFVJM, Campus de Teófilo Otoni/MG

Na minha casa havia um cata-vento. Aliás, eram dois: o primeiro eu mesmo fiz com lata de óleo de cozinha. Era pequeno. Eu o coloquei no canto da varanda. Seu eixo era de refil de caneta e funcionava bem. Criança, a gente costuma sobrevalorizar a própria capacidade. Pensando bem, ele não era tão bom assim. Meu pai construiu o segundo cata-vento. Ele percebeu que eu me havia interessado pelo assunto. Pegou uma hélice de motor usado e a adaptou a um eixo de rolimã.

Ficou bem feito, como todas suas invenções. Foi colocado no poste em frente à casa. Por ser mais alto, ele rodava mais. Com o passar dos dias só ficou o grande: meu pequeno cata-vento enferrujou. Reconheci minha limitação.

Eu gostava de ficar olhando o cata-vento. Ora lento, ora rápido e imponente, seu movimento me fazia viajar pelas regiões de mim mesmo. Depois nos mudamos para a cidade e do cata-vento só ficou a lembrança. Mas ainda os admiro. Cata-ventos são precisos: cumprem aquilo para o qual foram feitos. Os gregos antigos chamavam isso de “excelência”: o ato de algo ou alguém realizar com maior precisão possível aquilo que lhe é próprio. Pois bem, a excelência dos cata-ventos seria esta: acompanhar o vento. Não se preocupam em rodar ou em parar. Apenas rodam ou param.

Tenho vontade de aprender com eles tal ciência: fazer aquilo que me é próprio. Mas o que seria? Para falar a verdade ainda não sei. Até porque esse referencial clássico segundo o qual tudo e todos têm seu papel definido no universo já não cola mais. Hoje, com base em outras visões, sabemos que nossa existência é construída a cada dia. Estamos sempre mudando. O fato é que, pelo menos, já sei de várias coisas para as quais não “fui feito”. É um bom começo.

Nietzsche tinha uma formulação interessante para um bom projeto de vida: tornar-se o que se é. Novamente, não se trata de encontrar uma essência preestabelecida, como se cada pessoa nascesse com um roteiro, devendo apenas descobri-lo. O que o filósofo propunha estava mais próximo da ideia de autenticidade. Ajustar as ações, os afetos e as ideias àquilo que nos configura em nossa trajetória pessoal e não o contrário: praticar ações, cultivar afetos e ideias que nos são impostos ou que nos tornem estranhos a nós mesmos. Numa palavra: uma vida autoral.

No célebre romance Dom Quixote há algo interessante sobre isso. Miguel de Cervantes nos leva a acompanhar o fidalgo mudado em cavaleiro, tendo ao seu lado um lavrador que se transforma em escudeiro. As aventuras de Dom Quixote e Sancho Pança permitem as mais diversas possibilidades de reflexão. Gostaria de apontar uma: a ideia de limite. De modo geral, o romance todo é uma grande discussão sobre limites. Desde a história em si – uma vez que o protagonista deseja refundar um modelo moral e social que historicamente já não cabe – até uma dimensão mais profunda: o limite dos sonhos imposto pela dura realidade. Por isso a engenhosa construção do autor nos leva a um sentimento duplo: rimos de Quixote e, ao mesmo tempo, torcemos por ele.

Mas há uma cena especial que merece destaque. Quando Dom Quixote e Sancho Pança se encontram com um duque e uma duquesa, na segunda metade do romance. Sabendo das loucuras do nobre cavaleiro e de sua promessa feita a Sancho de lhe dar o governo de uma ilha, o casal, ávido por fazer troça dos visitantes, inventa um enredo enganoso, possibilitando que o escudeiro seja nomeado governador da ilha Barataria. É o momento em que Sancho ganha maior destaque na saga. Parte dos moradores conhece a farsa, parte não. Ocorre que o “governo”, que dura apenas dez dias, surpreende até aqueles que sabem do teatro. Sancho se mostra capaz de unir o saber popular de simples lavrador ao ofício de governar um povo. Mas o aumento das dificuldades e o estouro de uma guerra – também falsa – levam Sancho a um duro balanço de sua jornada até ali. Ele, que desde o dia em que decidiu seguir os passos de Dom Quixote sonhava em conquistar o poder de uma ilha, agora admite que isto está além de suas condições: “Não nasci para ser governador, nem para defender ilhas ou cidades contra inimigos que as queiram assaltar. Melhor entendo eu de arar e cavar, podar e plantar as vinhas, que de fazer leis ou defender províncias e reinos”.

A aparente derrota pode ser vista, na verdade, como grande conquista. Aliás, duplamente: Sancho provou para si e para os demais, grande habilidade em diversos momentos do governo; em segundo lugar, mostrou-se sábio por reconhecer seus limites. Seu retorno à condição de escudeiro – que se articula diretamente com a volta posterior da dupla para casa – pode ser visto como lição de reconhecimento da própria condição. Sancho tornou-se o que era.

O leitor mais jovem poderá achar essa interpretação fatalista. Eu creio que não. Porque não se trata de retorno ao mesmo ponto: houve uma jornada, uma viagem, um aprendizado. Se Sancho não conservou o governo da ilha, ao menos agora governa melhor a si mesmo. O que, em termos filosóficos, é muita coisa! Conhecer-se melhor, reconhecer os limites: um desafio para todos nós. Não se trata de abandonar os sonhos, os desejos, os projetos, mas de ajustá-los às condições reais. O nome disso não é fraqueza, mas sim sabedoria.

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