Guerra ou crise sanitária? O “lugar” das mulheres em tempos de pandemia

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Juliana Lemes da Cruz

Em uma batalha, os combatentes alertados do perigo não aguardam a morte, porque se protegem, guardam a si e aos seus. Para derrotarem o inimigo, na condução da tropa, o comandante precisa conhecer o terreno onde pisa e seu oponente, além do potencial de seu próprio exército, do exército alheio, e também os pontos fracos de ambos.

Por isso, o ditado; “guerra avisada não mata soldado”. Os bons combatentes sabem que em uma luta, as armas precisam ser proporcionais à batalha à frente. E sabe bem que se o inimigo é desconhecido, não será possível derrotá-lo na força. Assim, a melhor estratégia é o recuo. Qualquer que seja a batalha, o “inimigo” não deve ser subestimado. É preciso conhecê-lo para eliminá-lo. Do contrário, ele quem provocará baixas no seu exército.

A insistência em tratar a crise sanitária e humanitária que vivemos diante da pandemia de COVID-19 como uma espécie de “guerra”, não é por acaso. O cenário vivido nos hospitais ilustra os campos abertos em contexto de batalha, com pouquíssimos recursos disponíveis que sirvam de escudo frente aos disparos. Não à toa, os hospitais construídos para a emergência de saúde pública são chamados de hospitais de “campanha”, denominação que se associa aos cenários de guerra. A diferença é que numa guerra armada, geralmente, o ataque é visível e a resposta imediata. Numa crise sanitária, o oráculo seria a ciência, pois o ataque, por vezes, só é percebido quando o terreno já está dominado pela doença, e sua solução exige estudos e tempo.

O mundo tornou-se um campo de batalha, especialmente para as mulheres que são profissionais da saúde, mais vulneráveis à contaminação pelo vírus, e por vezes, tratadas como um oponente a ser combatido. Segundo Melo e Thomé, o cenário de guerra, “Por excelência (…) é um campo narrativo no qual os homens transitam com naturalidade, enquanto às mulheres lhes resta papel secundário ou de obediência às leis maiores”. As cientistas ainda destacam que o papel da mulher ficou por muito tempo associado à tarefa exclusiva de reprodução da vida. Sendo que a ida delas à guerra poderia comprometer o destino da espécie humana. Essa atribuição de “dar a luz” limitou as mulheres em determinados cenários, e fez afastá-las da participação na vida política da sociedade.

A analogia da crise sanitária, que vivemos há alguns meses, à guerra, recorta o “lugar do homem”, pois o espaço de guerra nunca foi um lugar socialmente entendido como “lugar de mulheres”. Assim, suas demandas permanecem secundárias e negligenciadas. As mulheres compõem 63% dos campos de trabalho no setor da saúde do Brasil; nos últimos anos engrossavam o bloco dos trabalhadores informais; representam 45% das chefias de família e estão na linha de frente dos serviços essenciais como enfermeiras, técnicas, faxineiras, assistentes sociais e médicas.

No mundo, elas representam 70% dos trabalhadores da ponta nessa pandemia. No mesmo sentido, uma guerra remete ao arbítrio de um comandante e aos seus núcleos de decisão, que deixam de fora vozes femininas. Os espaços de poder onde as estratégias são definidas, geralmente, são compostos por homens, numa tomada de decisão verticalizada, sem espaço para contestação externa ao grupo que se fechou em torno do chefe.

A guerra, que aponta para a direção de procedimentos e estratégias baseadas em disputas por território, ideias ou valores precisa ser diferenciada do contexto de crise sanitária, que remete à condução coordenada que priorize elementos que envolvam a solidariedade e a proteção da vida humana, diferente de uma disputa por poder. (Imagem – Fernanda Arueira, médica na linha de frente em Teófilo Otoni. Referências – Hildete Pereira de Melo e Débora Thomé, texto – “A pandemia de guerra dos homens”, 2020. Disponível em https://fes-minismos.com).

Juliana Lemes da Cruz. Doutoranda em Política Social – UFF. Pesquisadora GEPAF/UFVJM. Coordenadora do Projeto MLV. Contato: julianalemes@id.uff.br

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