Aborto – reflexões sobre o direito da mulher de decidir pela interrupção da gravidez

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Juliana Lemes da Cruz. Doutoranda
em Política Social – UFF. Pesquisadora
GEPAF/UFVJM. Coordenadora do Projeto
MLV. Contato: julianalemes@id.uff.br

O Congresso argentino conferiu às mulheres o direito de interrupção da gravidez até a 14ª semana de gestação, que poderá ser feita gratuitamente e de forma segura no sistema de saúde do país. O projeto de Lei foi apresentado pelo presidente Alberto Fernández. Sua aprovação ocorreu dia 30/12/20 no Senado, sendo 38 votos a favor e 29, contra. O Papa Francisco chegou a pressionar congressistas para que votassem contra a legalização do direito das mulheres em decidir pelo aborto. Possivelmente, a Lei será sancionada sem vetos.

O direito de decidir pelo aborto foi alvo de comemorações dos movimentos de mulheres argentinas, principalmente, de viés feminista, em razão das décadas de pressão junto aos governos para que o estado reconheça suas responsabilidades pela garantia dos direitos humanos das mulheres frente às frequentes violências que sofrem e para que todas tenham garantido o direito à propriedade de seus corpos, podendo decidir sobre eles. As mulheres, em seus discursos, relataram situações de meninas e mulheres que decidiam pela interrupção da gravidez e realizaram procedimentos inseguros à própria vida, resultando em mortes.

No mundo, 67 países já possuem legislações que conferem às mulheres o direito de decidirem pelo aborto. Dentre os quais: Alemanha, França, Espanha, Portugal, Itália, Suécia, China, Rússia, Estados Unidos, Cuba, Canadá, Austrália, Moçambique, África do Sul, Uruguai, dentre outros. No Brasil, o aborto é crime desde 1984, exceto em três situações: 1)se a gravidez é decorrente de estupro; 2)se a gravidez representar risco de vida à mulher; 3)se for caso de anencefalia fetal (não formação do cérebro do feto).

Apesar dessas possibilidades, de janeiro a junho de 2020, foram realizados em mulheres atendidas pelo Sistema Único de Saúde (SUS), 80.948 curetagens ou aspirações decorrentes de abortos malsucedidos, realizados de forma clandestina. O dado indica que os procedimentos foram 79 vezes mais frequentes do que os abortos realizados de forma legal. Esta recente informação confirma os resultados das versões 2010 e 2016 da Pesquisa Nacional do Aborto (PNA), que revelaram que, independentemente de ser ou não legal, as mulheres continuam recorrendo ao aborto.

Conforme a pesquisadora Débora Diniz, as mulheres não desejam abortar, porque não é uma decisão simples. Em pesquisas realizadas por sua equipe com mulheres que já abortaram, houve evidências de que elas não sofrem com arrependimento ou tensão psicológica pelo procedimento, como muitas pessoas acreditam. Mas, sim, temem serem denunciadas por terceiros e possível punição com prisão em razão de terem realizado ato considerado criminoso. Por este temor, algumas mulheres decidem pelo aborto de forma solitária, recorrendo aos mais diversos métodos.

O grupo de mulheres sem recursos financeiros ou informação sobre o assunto decidem por métodos para interrupção da gravidez pouco seguros, o que acaba gerando hospitalização e até morte. O outro grupo de mulheres, que têm condições de acesso a métodos seguros nas primeiras semanas de gestação, a exemplo da autoadministração de misoprostol (citotec) ou recurso a clínicas clandestinas, geralmente, têm sucesso na interrupção da gravidez. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), a referida medicação é segura para o fim que se destina e por isso é recomendada nos países onde a interrupção voluntária da gravidez é permitida.

Segundo o Conselho Federal de Enfermagem em 2018, a criminalização não impede que 1 milhão de abortos induzidos ocorram todos os anos no Brasil, onde a cada dois dias uma mulher morre por aborto inseguro. Em 2020, o sistema de saúde brasileiro já gastou 30 vezes mais, com procedimentos pós-abortos incompletos (R$ 14,29 milhões) do que com abortos legais (R$ 454 mil). Desse modo, a sanitarista Tânia Lago, em entrevista ao G1 (2020), explica que a complicação de aborto “É quando a mulher teve uma expulsão incompleta e ficou com medo de ir no hospital, continuou em casa sentindo dor e sangramento, e aquele material no útero se infecta. […] é essa infecção que pode ser grave, que é uma complicação de um aborto induzido”. A profissional complementa citando alguns exemplos de métodos abortivos que aportam no sistema: injeção de soda cáustica no útero, arame de cabide e talo de mamona. Procedimentos solitários que podem ser malsucedidos a ponto de levar a mulher ao risco de sequelas, de perda do útero ou até da vida.

As pesquisas apontaram que essas mulheres são mulheres comuns e em sua maioria, estão envolvidas em relacionamentos seguros. O artigo sobre a PNA 2016 mostrou que 15% das mulheres que realizaram aborto são católicas e 13% evangélicas/ protestantes/cristã não católica; que 19% são separadas/viúvas; 16% casadas e 12% solteiras. Quanto à faixa etária, mostrou-se mais recorrente entre mulheres de 35 e 39 anos e em 19% dos casos, as mulheres já têm filho (s) e em 8% ainda não tiveram.

Este tema, que gera tanta polêmica, ainda é um tabu na sociedade brasileira. Muitas mulheres, sequer, conseguem dialogar sobre o assunto, em razão das pressões impostas socialmente vinculadas aos costumes, valores e princípios orientados pela direção religiosa e moral que compõe o seio social, representando a percepção comum da massa populacional. A esta temática central de saúde pública, estão intimamente relacionados argumentos pautados na religião e na moralidade, o que condiciona a discussão sobre os corpos femininos a um majoritário padrão de entendimento.

Nesse sentido, a depender da cultura de cada lugar, as mulheres não têm, materialmente, o direito à decisão sobre o próprio corpo e em uma análise mais ampla, as mulheres também são tolhidas do direito de conhecer, refletir e opinar sobre a concordância ou não do próprio direito de decidir pelos seus corpos. Ocorre que, esta conformação social apela a um modelo de Estado que legitima o poder da religião em detrimento de um Estado que se intitula laico. No molde de Estado laico, oficialmente, o Estado é separado da religião, baseando-se em evidências que subsidiem as políticas públicas criadas para responder demandas sociais latentes. Assim, o deslocamento da questão do aborto para a direção da religião ou da moralidade, invisibilizando a realidade brasileira de morte de mulheres por conta de procedimento abortivo realizado de forma precária, especialmente, por mulheres pobres, atribuindo a elas, individualmente, culpa, nada mais é do que desresponsabilizar o Estado brasileiro e apoiar a negligência dos governos no que tange à saúde integral das mulheres.

Uma vez que, mulheres instruídas e com condição financeira equilibrada conseguem ter a acesso, mesmo que clandestinamente, aos recursos seguros para interrupção da gestação. Por outro lado, mulheres em situação de vulnerabilidade socioeconômica encontram-se entregues à própria sorte, submetendo-se a procedimentos inseguros. Pelo que as pesquisas mostram até aqui, ambas, mesmo em silêncio, continuam a recorrer à interrupção da gravidez indesejada.

Nesse texto, não chego a abordar o lugar do homem nesse processo, as prioridades da indústria farmacêutica, os métodos contraceptivos que subordinam mulheres e estimulantes que potencializam homens, a exemplo do viagra. Deixo de considerar também, argumentos não baseados em estudos sobre a realidade de saúde das mulheres demandantes do SUS em razão de aborto. Pontuo, por fim, algumas questões para a reflexão: As mulheres devem ser presas pela interrupção da gravidez? As pessoas defendem o aborto ou o direito das mulheres em decidir pelo aborto? Quem decide sobre os corpos femininos? Você consegue pensar esse tema separando o Estado da religião?

Referências: Cofen: http://www.cofen.gov.br/ uma-mulher-morre-a-cada-2-dias-por-causa-do- -aborto-inseguro-diz-ministerio-da-saude_64714.html; Matéria G1: https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2020/08/20/sus-fez-809-mil-procedimentos-apos-abortos-malsucedidos-e-1024-interrupcoes-de-gravidez-previstas-em-lei-no-1o- -semestre-de-2020.ghtm ; Mapa aborto Legal :https:// mapaabortolegal.org/;Artigo: Pesquisa Nacional de Aborto 2016. https://www.scielo.br/scielo. php?pid=S141381232017000200653&script=sciabstract&tlng=pt, Matéria EM: https://www. em.com.br/app/noticia/ gerais/2020/08/23/interna_gerais,1177752/em-67- -paises-interromper-gravidez-e-decisao-da-mulher-conheca-as-lei.shtml Imagem: Fonte: Center for Reproductive Rights • Infográfico: Rafael Alves / OMS:https://www.who. int/reproductivehealth/ publications/unsafe_abortion/9789241548434/pt/

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