O direito ao grito

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José Carlos Freire
Professor da UFVJM,
Campus de Teófilo Otoni/MG

Ao retomar esta coluna desejo que o leitor e as pessoas que lhe são queridas estejam bem. Pretendo que este texto seja o primeiro de outros nos quais a filosofia dialogue com a literatura. Na maioria, livros que ainda não li. Não se trata de crítica literária, pois isso excede minhas condições. É algo bem mais modesto: quero compartilhar reflexões. Considero que romances, contos e poesias, nos fazem pensar sobre nós, sobre a vida, sobre o mundo que temos ou o que gostaríamos de ter. Se o leitor se sentir motivado a ler ou reler as obras sugeridas e tantas outras que me escapam, o objetivo terá sido atingido. Das muitas urgências de nosso tempo esta é, sem dúvida, uma das maiores: precisamos de mais literatura.

Há pouco tempo fui provocado a ler A hora da estrela, de Clarice Lispector. Isso partiu de uma conversa com uma velha amiga. Digo ler – e não reler – porque a primeira leitura que fiz há mais tempo foi rápida. Essa autora instigante, que está na fronteira entre literatura e filosofia, merece ser lida com toda a atenção.

A hora da estrela é o último romance publicado em vida pela escritora e narra o cotidiano de uma mulher nordestina que vive no Rio de Janeiro. Sua vida sem emoções, sem cores e sem sabor. A narrativa seca e dura nos faz acompanhar Macabéa e, inevitavelmente, nos afeiçoamos a ela.

Antes, porém, quero dizer do modo como eu leio esse livro. O leitor certamente tem ou terá o seu. A riqueza da arte é nos possibilitar formas diversas de experiência. Não me arrisco, por exemplo, a fazer uma leitura de gênero do romance, por não me julgar capacitado para isso. Nem diretamente uma leitura de classe. Tais aspectos estão inegavelmente presentes, afinal, é um romance sobre uma mulher pobre, nordestina e que sofre constantes humilhações na grande cidade.

Leio “A hora da estrela” como dois livros amarrados. Um que narra a história de Macabéa; outro que se constitui como conjunto de pensamentos da autora. Os dois, que se entrelaçam o tempo todo, oferecem-nos grandes momentos. Começo pelo segundo. “Enquanto eu tiver perguntas e não houver resposta continuarei a escrever”. Nada mais pungente que isso. Por que se escreve? Filosofia, literatura? Resposta: porque ainda existem perguntas. Como diz a autora: “Este livro é uma pergunta”. E a opção de Clarice é por um texto cru, duro como a vida da protagonista, com máxima simplicidade nas palavras. Afinal, “a palavra tem que se parecer com a palavra”.

É curioso como a narrativa demora a apresentar Macabéa. Parece haver uma angústia da própria escritora em falar de algo que lhe provoca e, ao mesmo tempo, em procurar a forma adequada de fazê-lo. Como falar de uma “inocência pisada”, de uma “miséria anônima”? O que quer mostrar a autora com tais reflexões? Muitas podem ser as respostas. Escolho a minha: ela escreve “porque há o direito ao grito”. Da personagem e da autora.

O outro livro, o central, é a história de Macabéa, ou melhor, “as aventuras de uma moça numa cidade toda feita contra ela”. Nascida no sertão de Alagoas, órfã aos dois anos e criada por uma tia beata e insensível, essa jovem de dezenove anos acaba no Rio de Janeiro, trabalhando como datilógrafa. Divide o dormitório com quatro companheiras que exaurem suas forças no trabalho. Seu primeiro namorado é o ambicioso Olímpico de Jesus, que não passa de um sobrevivente, descontando nos outros e sofrimento que a vida brava do sertão lhe impusera antes de partir para cidade grande. Olímpico não ama Macabéa, mas sim o seu projeto de tornar-se homem de sucesso. Por isso não titubeia em constrangê-la. Macabéa tem no seu curto namoro mais uma relação de silenciamento.

Como é a vida de Macabéa? Simples: “ela somente vive, inspirando e expirando, inspirando e expirando”. Passa o dia no trabalho e as horas vagas ouvindo a Rádio Relógio. Aprendeu a receber, sem reclamar, as pancadas na cabeça dadas pela tia e também as que a vida mesma lhe dava: “As pancadas ela esquecia, pois, esperando- -se um pouco a dor termina por passar”. O leitor que vai acompanhando a narrativa se sente incomodado, quer que Macabéa rompa suas cadeias: “Por que ela não reage? Cadê um pouco de fibra? Não, ela é doce e obediente”. Tal como o narrador, nossa vontade é a de “fazer com que quando ela acordasse encontrasse simplesmente o grande luxo de viver”.

E há, sim, momentos belos! Em um deles ela experimenta pela primeira vez a solidão, quando falta ao trabalho e tem o dia e o quarto só para si. Saboreia mesmo uma pontinha de liberdade. Noutro momento, ao ver a capa de um livro do seu patrão, chega quase a se reconhecer no título, “Humilhados e Ofendidos”.

Mas o momento mais sublime é, sem dúvida, quando Macabéa conta a Olímpico, dono de uma insensibilidade agressiva, sobre o dia que ouviu no rádio a música “Una furtiva lacrima”. Sem saber por que, a música se materializara, arrancando- -lhe lágrimas; e agora chora novamente ao recordar a cena. Ela tenta até cantarolar a canção, mas a vida não lhe dera um namorado capaz de ouvi-la e de entender a grandeza daquela história. E ela se cala, uma vez mais.

Na última parte do romance ocorre o encontro de Macabéa com a cartomante. Não o detalharei, porque é preciso que o leitor percorra os parágrafos, com a calma que eles merecem. É ali, por exemplo, que o afeto que a moça nunca recebera na vida parece, enfim, emergir do mais profundo de si. A ponto de explodir em um terno beijo na velha senhora. Como na infância, ao acariciar a cartomante, era como se Macabéa acariciasse novamente a si mesma…

Mas, afinal, ela se rebelou? Ela descobriu que pertencia a uma resistente espécie “que um dia vai reivindicar o direito ao grito”? Aquela inocência foi, enfim, respeitada neste inóspito mundo? Passo a bola para você, leitor.

Finalizando, vale perguntar: O que este livro nos provoca? Posso falar do seu efeito em mim: Macabéa somos todos nós! Como ela, que “era um acaso”, também não sabemos, ou fingimos não saber, que, “numa sociedade técnica”, não passamos de parafusos dispensáveis. E a vida? O que seria? Nem de longe é uma coisa fácil. Como bem disse o narrador: “A vida é um soco no estômago”.

Sugestão de leitura: “A hora da estrela” (1977), de Clarice Lispector. Publicado pela editora José Olympio. Disponível em PDF na internet. Contato: freire.jose@hotmail.com

5 COMENTÁRIOS

  1. Parabéns professor José Freire e obrigado, por mais este brinde de conhecimento e erudição, de fato tens razão ao insistir: “precisamos de mais literatura.” E desde já tomo a liberdade de acrescentar: precisamos de mais leitores.

    • Prezado A. Carlos,
      Agradeço-lhe pela leitura e pelo comentário. Estou de pleno acordo! Parece-me que as duas tarefas são urgentes.
      Abraço!

    • Olá A. Carlos!
      Obrigado pelo comentário e pela leitura.
      Acredito que esteja corretíssimo: precisamos de literatura e de leitores..
      Um abraço!

  2. Fiquei muito ansiosa em ler esse livro dessa grande escritora brasileira, ainda mais depois que o professor José Carlos fez esse perfeito entrelace com a filosofia e a literatura. Concordo que nessa sociedade técnica a vida seja realmente um soco no estômago.

    • Oi Márcia!
      Obrigado pela leitura e pelo comentário. A proposta é mesmo essa, de incentivar a leitura de autores. Cada um de nós conhece poucos, mas socializando uns com os outros, vamos ampliando o mapa. E estar cercado de autores(as) como a Clarice é uma forma de estar bem acompanhados, com certeza.
      ABraço.

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