Sob o olhar de um homem, militar, pai, filho e cuidador: mulheres, violência e a experiência do parto

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Juliana Lemes da Cruz.
Doutoranda em Política Social – UFF.
Pesquisadora GEPAF/UFVJM.
Coordenadora do Projeto MLV.
Contato: julianalemes@id.uff.br

A história do Karlos me chamou atenção pela sua sensibilidade ao discorrer em uma rede social a experiência dos partos de duas mulheres de sua vida (a esposa e sua mãe), a partir do seu olhar de homem. Karlos Sena tem 31 anos, nasceu em Minas, mas passou grande parte da sua vida em São Paulo. Atualmente está sargento da Polícia Militar de Minas Gerais em Belo Horizonte. Casado com Taís, 28 anos, baiana, de Vitória da Conquista, criada em Águas Vermelhas/MG. O casal teve a primeira filha, Luísa, há 5 anos e na última semana, a Rebeca.

O relato do Karlos mostra um pouco de sua história de vida e o quanto isso interferiu na sua forma de enxergar o mundo, tratar as mulheres e atuar na profissão policial militar. Na adolescência, conviveu de perto com a violência doméstica cometida contra sua mãe, que, conforme ele discorrerá logo abaixo, criou seus filhos com muita dificuldade. Antes disso, Karlos expôs sua última experiência, o parto da Taís.

“Era madrugada e a gente se preparava para o parto. Foi a quinta vez que eu assisti uma gestação inteira e a segunda vez que assisti uma mulher parir. Acompanhei as três gestações da minha mãe e as duas da Taís. Todas, passo a passo, desde os primeiros enjoos, as consultas de pré-natal, os gastos com enxoval, as transformações hormonais que a mulher passa, as mudanças físicas e as famosas dores constantes. Pude assistir de perto os dois partos da Taís, que graças a Deus, foram normais”.

“No domingo, enquanto Taís se recuperava no apartamento do hospital, pude parar e refletir sobre cada cena que vi em todas essas gestações. Refleti sobre as dores, a aflição e o medo que vi no rosto dela em cada um dos partos, pude ver a moça sensível e sentimental transformar-se em uma guerreira, sofrer cortes, sangramentos e ser submetida a medicamentos, tudo pelo amor de trazer uma vida ao mundo. E olha que a Taís, graças a Deus, tem apoio familiar, tem marido e temos um ótimo convênio médico. Ou seja, não teve que passar por tudo sozinha. Após o nascimento da Rebeca, Taís teve que fazer uma curetagem, procedimento invasivo, e todo esse contexto e apreensão me fez ver com mais nitidez o quanto vocês são f****. Foi automático lembrar das gestações da minha mãe, que além de mim, trouxe mais 3 irmãos meus ao mundo. Na época ela sofreu as mesmas transformações, dores constantes, idas ao médico, inclusive à pé por não dispor de meios de transporte, e tudo isso ela fez sozinha, sem ajuda do marido ou terceiros. Faltou ajuda humana mas sobrou ajuda Divina”.

Quanto à sua mãe, Karlos revelou que sua gravidez, dele próprio, se deu em uma época que o preconceito era bem maior. “Em cidade pequena, solteira e grávida de um ‘bom moço’, sofreu demais por tomar a decisão de prosseguir na gestação, até, no meio dos parentes, foi rejeitada. Me largou cedo em MG (em meus primeiros anos de vida) e foi para SP ser empregada doméstica, tentar ganhar dinheiro para meu sustento. Todo mês mandava para MG uma parte do que ganhava em SP, o dinheiro servia para me alimentar e vestir, assim fui crescendo. Em meados de 98 (eu tinha 8 anos), ela conheceu um cara em SP, ele fez juras de amor e ela imaginou que era a hora de ser feliz, conhecer alguém, e de quebra, me levar pra morar com ela. Ela decidiu morar com esse homem, e daí vieram meus três irmãos. A relação com o meu padrasto era sofrida. Apesar dele ser trabalhador, tratava minha mãe daquele jeito, bastava umas doses de álcool ou as dificuldades financeiras aumentarem que havia muitas brigas dentro de casa. Presenciei inúmeras vezes ele humilhando, xingando e menosprezando a mãe. Em algumas ocasiões até entrei no meio para defendê-la. Nas 3 vezes que ela engravidou do meu padrasto foram todas com muita dificuldade, passando necessidade dentro de casa, sofrendo com dores, e cumprindo toda a trajetória da gestação sozinha. Eu que acompanhei e ajudei como podia. E mesmo assim, ela pariu e criou com honras meus 3 irmãos. Todos muito bem-criados. Minha mãe é minha maior inspiração em todos os sentidos. É a prova de que a rejeição, o abandono, a solidão e o desprezo, às vezes são capazes de indiretamente gerarem pessoas fortes, dignas e honradas”. A mãe de Karlos é a Maria da Soledade, 50 anos, natural do distrito de Lagoa Preta, cidade de Tremedal, interior da Bahia. Na infância, trabalhava na roça como agricultora. Atualmente está auxiliar de serviços gerais, solteira, mãe de 4 filhos (Eu, 31 anos, Milene 21 anos, Estefane 20 anos, Felipe 17 anos). Criou os 4 praticamente sozinha. O fez morando em SP, pagando aluguel, e inicialmente trabalhando como empregada doméstica e faxineira”.

Sobre a sua atuação enquanto policial militar, Karlos acrescentou: “Hoje, em cada ocorrência de Maria da Penha que eu atendo, vou com o coração, pois vivi isso dentro de casa. Sei o que é se trancar no quarto aos prantos desesperado, por medo das brigas em casa evoluírem para tragédia. E o pior, sem ter para onde ir. Por esse olhar diferente, sobre a dinâmica das situações que envolvem esse tipo de violência, já identifiquei muitas violências e levei agressores para cadeia, graças a Deus, podendo enxergar que algo estava errado, mesmo a mulher negando diante de mim. Eu tenho essa missão de mostrar a sensibilidade dos policiais. Tento transmitir essas percepções para os colegas que trabalham comigo. As pessoas de fora acham que somos alheios ao mundo. Na verdade, trago comigo experiências que nem comento, mas que mexeram e mexem muito comigo. Nosso trabalho não se resume a simplesmente atender ocorrências e cumprir ordens, envolve sensibilidade. “Enfim, tais experiências me fizeram admirar ainda mais as mulheres, vocês foram escolhidas para a maior missão da criação: gerar vidas. Portanto, meus parabéns à minha mãe Soledade Sena, à minha esposa Taís e a todas vocês mulheres que emprestam ou já emprestaram o útero, o corpo, a mente, a saúde e o coração a Deus para gerar vidas e dar sentido ao mundo”.

(Karlos atua na 9 Cia/34º BPM/1ª RPM – no comando da Base Comunitária Móvel do Bairro Coração Eucarístico. Mas, nem sempre foi assim. Ele já foi cercado por bandidos fortemente armados enquanto estava no interior da sua unidade, na região do Vale do Jequitinhonha, sendo necessário saltar obstáculos para se desvencilhar das rajadas de tiro. Fotos cedidas por Karlos).

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