Tempos de escola

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José Carlos Freire
Professor da UFVJM,
Campus de Teófilo Otoni/MG

No último texto fechei o ciclo de quase um ano sobre os escritos de Clarice Lispector. Espero que não só para mim, mas também para você que me acompanha por aqui tenha servido como auxílio para suportar tempos tão difíceis. Retomo agora as crônicas de tema livre e o faço a partir de um sonho que tive nesta madrugada.

Estava em frente à escola onde estudei. Atravessei o corredor que ligava o portão da rua e o outro que dava para o pátio interno. Lá estava um grupo de pessoas, certamente encarregadas da limpeza e manutenção do espaço em razão das férias, como supus. Pedi para ir à biblioteca e uma delas me abriu uma sala abafada e vazia, com as janelas todas fechadas. Deixou-me só por um instante e em seguida voltou, dizendo que abriria a outra porta. Ao passá-la, surpreendi-me ao ver que dava para o dito corredor de saída para a rua. Fim do sonho.

Nessas manhãs de outubro o sol costuma dar as caras bem cedo. Despertando do sonho, vi que eram pouco mais de cinco horas. Mas não queria acordar totalmente, porque algo me tocara naquela cena. Por que a sala estava vazia? Onde estavam as estantes de livros? Seria isso um sinal dos tempos de escola fechada que vivemos por tantos meses? Ou algo ainda mais forte: o indicativo de que, hoje, a cultura – da qual a biblioteca é um símbolo – perdeu sua importância?

Gostei dessas duas referências, sobretudo a última. Afinal, em um país no qual sucessivos ministros da educação se colocam a favor da burrice generalizada, a ideia de uma biblioteca vazia é bem instigante. Daria, aliás, um curta metragem de primeira! Encerraria com um corte, passando da imagem da sala vazia para a da rua onde livros de literatura e ciência formariam uma grande fogueira, cercada de ministros de Estado e do presidente com fósforo na mão.

Mas estou devaneando. Isso tudo é interpretação racional que agora faço. O que quero partilhar é algo mais genuíno e simples. Volto àquele momento em que olhei o relógio e relutei em acordar definitivamente. A partir daí, foi cerca de uma hora de estado intermediário entre o dormir e o acordar. Então, viajei ao passado.

Naquela escola estudei da quinta série, como se denominava na época, ao primeiro ano do ensino médio. Cinco anos que cobriram a maior parte da minha adolescência. Coisas boas e as outras. Revisitei as figuras que me amedrontavam, os caras mais velhos que se mostravam experientes, que contavam vantagem e me deixavam frustrado por não ser como eles. Refiz também cenas bonitas como a fila da merenda e a delicadeza de colegas que se mostravam simpáticos, com certo compadecimento pela minha timidez. Relembrei rostos de amigos queridos, alguns de semestres, outros de longos anos com os quais dividi tarefas, brinquei no intervalo e até visitei a casa em momentos sem aula que caíam de presente de vez em quando.

A escola era para mim um portal encantado. O pequeno grupo escolar na roça já havia sido um passo importante, mas não se diferenciava do meu modo de vida. Terminada a quarta série, eu queria ir para cidade, ainda que fosse aquela, pequena e bucólica. Nem os sete quilômetros que separavam nossa casa na roça da cidadezinha me desanimavam. Eu não li Dom Quixote naquela época; minhas descobertas literárias ficaram restritas à Coleção Vaga Lume – e eu me extasiava. Então não vou dizer que minha bicicleta era Rocinante e eu, Dom Quixote a desbravar aventuras. Até poderia. Na verdade, eu era Xisto em seu foguete espacial.

Fosse em um documentário, agora seria um bom momento para uma “voz over” entrar e dizer: “Ali nascia o sonho de conhecimento e desejo de sucesso de um pré-adolescente”. Mentira! Era nada disso. Só queria conhecer o mundo, ampliar meu horizonte. Falando sinceramente, não sabia nem o que queria. Mas era bom. O vento batendo no rosto enquanto pedalava; a expectativa de como seria a aula de logo mais; a mistura de medo-desejo de ler um texto na aula de português. E se aquela colega me pedisse de novo a borracha, é porque gostava de mim?

Nesse enlevo amanheci, rememorando meus tempos de “Fundamental II”, como hoje chamamos. Na mesa do café, deparo-me com Júlia e Lucas empolgados porque já não falta muito tempo para retornarem ao ensino presencial. E então entendi: era isso! Esse desejo deles é o mesmo que eu tinha. Por isso sonhei. Mas não se equivoque, caro leitor, cara leitora: não é o conhecimento e o sucesso que as crianças buscam na escola. Isso é papo de gestores escolares e pais/mães que esqueceram sua infância e acham que filhos e filhas devem ser treinados para a concorrência desde o berço.

Do que sentiram falta Júlia e Lucas e todas as crianças que estiveram privadas do ensino presencial na pandemia? Só eles podem dizer com precisão. Mas suspeito que tem cheiro de lanche, cor de sol e som de totós e gritaria no intervalo. O forte da escola não é o conteúdo – há tantos anos Rubem Alves já nos ensinava isso! Seu forte é o vínculo afetivo, o convívio, a descoberta, o encantamento, o estranhamento, tudo isso misturado. Escola é um prédio cheio de gente com um monte de histórias fascinantes. De vez em quando tem umas aulas, umas provas, mas logo acabam e, então, vem o intervalo de novo!

De qual conteúdo didático eu me lembro naqueles cinco anos que hoje revisitei? Quase nenhum. Mas me lembro da gola bem dobrada da blusa de Eliana, do charme de Marta e sua fala mansa, da voz rouca da Professora Ana, da inteligência de Jair, dos óculos gigantes de Juliano, da habilidade com a bola de Walker, do sorriso de Carla na festa junina que me acendeu mil fogueiras no peito.

De que dia mais me recordo? De um em que não teve aula… Ao invés de dar matéria, a professora passou o filme “Top Gun – Ases Indomáveis”. Ele mesmo! Não me importo com os críticos do cinema clichê. Aquilo para mim foi um deslumbramento. Ainda hoje, mais de três décadas depois, se tocar a música-tema e eu fechar os olhos, direi com toda sinceridade: “Que saudade dos meus tempos de escola!”.

Contato: freire.jose@hotmail.com / Ilustração: Vinícius Figueiredo.

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