Assim como o tardio direito à educação formal, de votarem, e serem votadas, de trabalharem sem que precisassem pedir a permissão do marido, as mulheres permaneceram, por muito tempo, distantes da permissão de questionarem a si próprias sobre os motivos de se submeterem a processos de sofrimento em todos os âmbitos da vida social. Quando isso foi possível, de forma gradativa e violenta a muitas mulheres do passado, o processo de descobertas não parou mais. Por isso, todos os dias, as mulheres avançam no sentido de recuperarem o tempo em que estiveram presas às suas “cavernas” simbólicas, rumo à liberdade. Tanto no sentido de conhecerem a si próprias, seus reais desejos e percepções de mundo, quanto no sentido do acesso ao mundo de coisas que, historicamente, foi-lhes negado.
A série MAID, disponível na Netflix, constitui um exemplo de possibilidade de reflexão sobre os processos femininos de descoberta de si mesmas nesse mundo. Muito além de mostrar as dificuldades de uma jovem mãe para se sustentar, sustentar sua filha e se livrar da violência doméstica vivida, a série expõe a luta solitária e naturalizada das mulheres que se desdobraram cotidianamente para sobreviverem e sustentarem seus valores mais íntimos.
Decidi discorrer brevemente sobre o que percebi da trama porque tem sido uma das mais debatidas entre mulheres dos círculos femininos que tenho mais contato. E de fato, a série, que não se passa no contexto brasileiro, expõe a sutileza das violências vivenciadas por uma mulher e também, a cruel corrida feminina na direção do rompimento do ciclo violento por meio da busca de apoio familiar, comunitário e estatal.
Pontualmente, cada episódio materializou as aflições de uma jovem mãe, que, percebeu-se em situação de violência doméstica e familiar apenas no ápice de seu controle por parte do seu companheiro, viciado em álcool. Ela não acreditava que vivia no ciclo violento porque não tinha marcas em seu corpo físico. Percebeu o problema quando se viu encurralada, com uma criança de 3 anos nos braços, sem um lugar para se abrigar, sem dinheiro e sem apoio familiar.
Após tomar consciência de que precisava fazer algo para se livrar daquele sofrimento, buscou ajuda. Encontrou, no seu percurso solitário, a violência institucional e a burocracia do estado. Em meio à escassez de recursos de toda ordem, Alex (Alexandra) viu-se numa condição de desamparo e medo. Para seguir no processo de assistência social direcionado às vítimas de violência doméstica, precisou narrar o que acontecia com ela e percebeu que o que sofria também era violência. O serviço do governo exigia que ela registrasse um boletim de ocorrência para ter acesso ao apoio. Ela assim o fez e foi acolhida em uma casa abrigo sigilosa. Lá, recebeu o amparo social, psicológico e jurídico demandado por qualquer mulher em condição análoga e que, infelizmente, ainda não temos disseminado amplamente pelo Brasil. Salvo nos grandes centros urbanos, o interior dos estados revela uma realidade perversa às mulheres que se veem encurraladas em ciclos violentos.
Assim como Alex, mulheres dependentes economicamente, com filhos, sem o apoio de familiares e desinformadas, padecem dia após dia relutando sobre os processos que têm que enfrentar para a garantia da própria sobrevivência física e saúde mental. Encontra, não raro, portas fechadas, ouvidos não disponíveis para a escuta e incompreensão. Na série, é possível perceber que as mulheres, mesmo flageladas, retornam aos relacionamentos violentos por acreditarem na mudança do parceiro e negarem o quão perigosa é a decisão de permanecer naquele ciclo.
O movimento de idas e vindas, sob o misto de sentimentos de esperança e frustração, bloqueia os sonhos de ascensão pessoal e profissional de qualquer mulher, porque a desencoraja a enfrentar a vida. A série mostra que não se trata de uma questão de vitimização feminina, mas, da realidade sutil e naturalizada da violência contra as mulheres, da sobrecarga mental gerada em razão da culpa e da cobrança pela responsabilidade sobre a qualidade de vida de outras pessoas. Abre-se mão, não raro, da própria individualidade, a menos que haja um despertar. A série expõe muitas outras questões que não cabem nessa curta tira de jornal.
Nesses anos de imersão profissional e acadêmica nessa área, não posso finalizar dizendo outra coisa que não, uma constatação: raramente, uma mulher consegue romper um ciclo violento sem uma “muleta” externa. Ela precisa de informação, ser ouvida, acolhida, respeitada e compreendida no seu processo. Grande parte delas não se enxerga vivenciando um processo violento, mesmo que as lágrimas não parem de cair sobre o rosto. Por isso, a gente também precisa se autorizar a ser “muleta” e orientar os primeiros passos. Seja como uma pessoa comum, que compreende a gravidade do problema, seja na condição de profissional de um dos setores públicos responsáveis por esse acolhimento. Para isso, não esqueçamos, os serviços também precisam existir, estarem ativos e funcionais. A solidariedade humana não basta. As políticas públicas de enfrentamento à violência contra as mulheres exigem constância e isso demanda o compromisso dos gestores públicos. No mais, assistir MAID é mais do que recomendado para a reflexão de homens e mulheres sobre uma das questões sociais mais latentes na atualidade (Imagem: divulgação de MAID – Netflix).