Policiais não são heróis: alertas emitidos ao campo da segurança pública

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Por: Elisandro Lotin e Juliana Lemes

A saúde mental dos policiais sempre foi um tabu, sendo pouco ou nada compreendida pelos próprios policiais, e menos ainda, pelas autoridades e pela sociedade. Ao contrário, para além do não reconhecimento, esta tríade – o que nos permite incluir também os órgãos de comunicação das massas, reproduz estereótipos que maximizam tensões, agravando o problema, na medida em que instigam a falaciosa e utilitarista premissa do policial herói. A cultura institucional do profissional forte, corajoso, viril, resiliente e combativo reflete a negação por parte das instituições, especialmente militares, sobre o papel de sujeito dos policiais. O sentido do heroísmo conduz à ilusão de cenários ideais diante da vida real, que é incerta.

A cultura do herói confunde, desumaniza e violenta os policiais na sua essência. Nos últimos tempos, graves episódios envolvendo policiais da ponta da linha acenderam o alerta: há algo de muito grave acontecendo nas instituições de segurança pública que já não está admitindo contenção interna. Os servidores avançaram os muros simbólicos sob as rígidas estruturas das corporações para levar à público, um claro pedido de socorro. Os policiais não são heróis!

No final do ano de 2020, um soldado da PM de São Paulo, no centro da capital paulista, apontou sua arma de fogo para o rosto de um cabo da PM. Quem pertence aos quadros da Segurança Pública ou estuda o assunto sabe que o ato de sacar uma arma e apontar para um superior hierárquico revela que, por detrás do que nossas vistas enxergam, há uma questão de saúde mental muito séria, que deve ser cuidada.

Por outro lado, a população em geral costuma interpretar fatos como esse de forma diversa. A notícia viralizou nas redes sociais e a reação veio: “Se faz isso com o próprio colega, o que faria com um cidadão comum?”; “Que vergonha, isso é falta de preparo para a profissão”; dentre outras afirmações. Os posicionamentos foram de pessoas comuns, que têm suas próprias construções sobre o serviço de polícia e os profissionais associados à segurança pública. Entre as pessoas que não se dedicam ao estudo da área, raros são aqueles que conseguem enxergar que pode ter algo bastante sério acontecendo para que uma atitude como aquela ocorra explicitamente.

Por uma questão de preservação da segurança dos próprios policiais e também para manter em sigilo o planejamento das atividades em determinados setores, pouco se expõe ou se diz sobre a complexidade do serviço policial. Dado o nível de “fechamento” das instituições, mesmo outros setores públicos, desconhecem como se dá a cadeia de comando entre as equipes e como se desenvolve o trabalho profissional de policiais da ponta da linha, que lidam diretamente com a população. Por assim ser, interpretações equivocadas sobre suas condutas ocorrem com relativa frequência e por diferentes agentes. Questões internas às corporações, alheias ao conhecimento da população, também influenciam na saúde mental dos policiais e, consequentemente, na prestação de serviço à comunidade. Dentre os quais, as mudanças repentinas de função, local de trabalho e horários, alteram, sobremaneira, a rotina familiar e pessoal, causando transtornos incalculáveis.

No início do ano de 2021, outro soldado PM, dessa vez, do Estado da Bahia, demonstrou mais uma vez o quanto a saúde mental de policiais deve ser priorizada. Em um dos cartões postais de Salvador, o soldado aparentemente em surto, fardado, rosto pintado com as cores verde e amarela, fuzil em mãos, efetuou disparos e desabafou aos gritos, as suas aflições. Após negociação mal sucedida, o soldado foi baleado pelos próprios colegas. Socorrido, veio a óbito em seguida. Um desfecho lamentável, que escancarou o estado de saúde das instituições de segurança pública do país.

A situação foi uma nítida denúncia de que existem policiais diferentes dentro de uma mesma polícia e que as condições de trabalho, a forma de lidar com a população e percepções sobre a missão dos profissionais depende do interesse do alto escalão. Este, em regra, não reconhece a vasta experiência e os saberes orgânicos dos policiais empregados nas ruas, que não têm espaço e voz para dentro de suas instituições.

A segurança pública é um dos gargalos para a garantia da qualidade de vida dos brasileiros. É um dos setores que mais é lembrado nos períodos eleitorais pelos políticos, uma vez que todos eles sabem que esta é uma demanda latente e permanente da população. Para atender a este anseio, há investimento em concursos públicos pelos governos e campanhas pesadas de marketing privado das escolas preparatórias para ingresso nas carreiras. Nessa fase, pouco ou nada se discute sobre as pressões associadas à natureza do serviço após o ingresso nas instituições.

Para a comunidade em geral, ostentar um cargo público vinculado à segurança representa exercer poder sobre as demais pessoas. É ter direito de portar uma arma de fogo, um distintivo, conduzir uma viatura, vestir uma farda e contar com estabilidade no emprego. Para muitos e muitas, a imagem de um policial se resume ao glamour de estar em uma condição de poder que apenas alguns chegam. No entanto, a realidade pode não estar representada apenas por estes elementos. Além das pressões externas, associadas ao cumprimento do dever, pressões de natureza intrainstitucionais também são refletidas em atitudes como a que pudemos ver no caso da briga entre policiais no centro de São Paulo e do desfecho trágico do soldado da PMBA.

Para dirimir parte dos problemas relacionados ao trabalho profissional foi criado, no âmbito do Sistema Único de Segurança Pública (SUSP), aprovado em 2018, sob a Lei nº 13.675, o Programa Nacional de Valorização Profissional (Pró-Vida), que prevê investimentos para lidar com a saúde e qualidade de vida dos policiais. No entanto, esses dispositivos permanecem ignorados pelo Ministério da Justiça.

A invisibilização da condição de sujeito dos policiais que prestam serviço direto à população também é potencializada na esfera estadual. Negociações a portas fechadas definem o silenciamento de representantes classistas e parlamentares diante de questões que envolvem: compatibilidade dos salários com as exigências da profissão; planos de carreira; humanização das relações internas, a despeito dos princípios de hierarquia e disciplina que indicam à verticalidade das relações funcionais; e a qualificação dos seus quadros, adaptando-os à realidade sociocultural e demandas do território em que atuam.

Em que pese, a renda média dos policiais esteja acima da média dos trabalhadores do Brasil, se levarmos em conta a natureza do trabalho, as restrições ao convívio social e familiar e todos os elementos que ele exige de cada profissional, inclusive, reserva financeira para custear um advogado para fazer sua defesa em caso de envolvimento em alguma situação que demande investigação e intervenção da justiça, não podemos considerar a remuneração dos policiais, bons salários.

Lembremos, não é honesto e justo exigir que policiais cuidem e protejam pessoas e respectivos patrimônios, se os atributos do cuidado e da proteção são a eles, adequadamente, conferidos pelo Estado. Os policiais não são heróis e, portanto, não são “superiores ao tempo”. A este respeito, deveria se fazer valer a Lei nº 13.967 de 2019 que determina que os regulamentos militares sejam atualizados de acordo com princípios da: I – dignidade da pessoa humana; II – legalidade; III – presunção de inocência; IV – devido processo legal; V – contraditório e ampla defesa; VI – razoabilidade e proporcionalidade; e VII – vedação de medida privativa e restritiva de liberdade.

Vê-se, por outro lado, a descredibilização da política como instância importante às classes; a politicagem; o extremismo; a desvalorização da categoria; a limitação da livre construção da identidade como profissionais; a lógica belicista de resolução de conflitos; o foco na violência e não em suas causas; e a pecha de heróis. Soma-se a esses elementos a utilização retórica e até aviltante das forças de segurança como trampolim político eleitoral aliado ao reforço dos antagonismos, que está levando policiais à loucura, e pior, eles sequer se dão conta disso.

O presente texto foi originalmente publicado na Revista eletrônica Fonte Segura, edição 84, de abril de 2021. Trata-se de uma produção em parceria com o amigo Elisandro Lotin, membro do Conselho de Administração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública; Sargento da Polícia Militar de Santa Catarina; Mestre em Gestão de Políticas Públicas (UNIVALI/SC); Especialista em Ciências Penais e Segurança Pública, Bacharel em Direito e Professor de Ensino Superior.

Reprodução: https://fontesegura.forumseguranca.org.br/edicao/ed-84/

Imagens: Assinap; acervo pessoal.

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