Dedo no gatilho: a manifestação das forças de segurança pública de Minas Gerais reafirma a crise do setor

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Juliana Lemes da Cruz.
Doutoranda em Política Social – UFF.
Pesquisadora GEPAF/UFVJM.
Coordenadora do Projeto MLV.
Contato: julianalemes@id.uff.br

Desde o ano de 2015 as forças de segurança pública não têm aumento de salário. No entanto, nos últimos cinco anos, com a crise política e econômica instaurada no Brasil, os servidores assistem à diminuição do poder de compra dos seus salários. Insatisfeitos, buscaram a recomposição salarial das perdas inflacionárias decorrentes. Assim, em 2019, Romeu Zema, governador de Minas, concedeu o reajuste aos servidores, condicionado ao pagamento em três parcelas: 13% no ano de 2020, 12% em 2021 e 12% em 2022.

Ocorre que, o governo fez o repasse apenas da primeira parcela, vetando as demais. O governo teria condicionado o pagamento das demais parcelas, à aprovação, no âmbito da Casa Legislativa de Minas, do Regime de Recuperação Fiscal proposto pelo governo federal. Conforme reclamam os representantes de classe, a medida seria prejudicial aos servidores a médio e longo prazos, uma vez que inviabilizaria a progressão na carreira em virtude do não pagamento de direitos conquistados por tempo de serviço prestado, por exemplo.

Sem acordo, servidores das forças de segurança pública de todo o estado de Minas foram às ruas na segunda-feira, 21 de fevereiro. A manifestação ocorreu na região central de Belo Horizonte, concentrando, inicialmente, na Praça da Estação e seguindo em caminhada até a Praça Sete. Representantes do movimento anunciaram número superior a 30 mil participantes na manifestação. Envolveram- -se policiais e bombeiros militares, policiais penais, policiais civis e agentes socioeducativos. Os representantes das unidades do interior deslocaram-se de ônibus até a capital, devidamente autorizados pelas respectivas chefias. No caso da Polícia Militar, o Coronel Rodrigo, Comandante Geral, considerou “[…] o evento legítimo, inclusive com a participação de quem ombreia na ativa […]”, ressaltando que continua em franca negociação com o governo e que se mantém “[…] engajado na defesa dos interesses e direitos da corporação” (Nota do Comando, 19. Fev.22).

Neste texto, procurei abordar o que há de invisibilizado sobre as forças de segurança, porque o que há de limitação e equívoco, por si só, já é um evento. Afinal, a segurança pública é um dos gargalos da sociedade e qualquer ação ou omissão que implique erro do servidor, é também um erro do estado. É legítimo que a população questione.

Apesar de expressiva, a manifestação das forças de segurança causou interpretações divergentes dentre as pessoas que se propuseram a analisar suas motivações. Isso ocorreu, especialmente, devido à faixa salarial de servidores da segurança, que encontra- -se acima da média salarial da maioria dos trabalhadores mineiros. Desse modo, não seria tão sensato, durante o momento de crise do estado, que esses servidores pressionam o governo por reajuste salarial para a categoria. Por um lado, o questionamento faz sentido, por outro, expõe parte do problema. Explico.

Diferentemente de outras categorias, que também estão sofrendo com o achatamento dos salários, a segurança pública, e em especial, os bons profissionais da ponta da linha, têm absorvido o maior impacto social e econômico com o problema. São os soldados, cabos e sargentos da Polícia Militar, os representantes da camada da segurança pública responsáveis por lidar diretamente com a população demandante dos serviços. São eles quem se envolvem em ocorrências de média e alta complexidade, estado à fora, que, por vezes, demandam o uso da arma de fogo, mesmo sendo este o último recurso para conter injusta agressão a si próprio ou a terceiros.

Àqueles comprometidos, que desempenham suas atividades de forma cuidadosa, há a possibilidade, não rara, de terem de responder judicialmente por uma determinada ação. Sendo culpado ou inocente, o servidor tem de arcar com as despesas decorrentes da contratação de um(a) profissional para ser constituído(a) como seu(sua) defensor(a) na situação. Há processos que perduram anos e com eles, a angústia da espera. Como se não bastasse, em decorrência da natureza do serviço, os profissionais da segurança convivem com a insegurança pessoal e dos membros de sua família. Essa situação decorre do risco de serem retaliados por criminosos em virtude das ações que, mesmo legitimadas pelo Estado e por dever da profissão, são compreendidas como procedimento realizado por vontade pessoal.

Por que enfatizo esses exemplos? Por que eles são vivenciados exclusivamente por profissionais da linha de frente das forças de segurança. Os mesmos que, ao ingressarem na polícia, imaginam a segurança pública diferente. Mas, com o passar dos anos, descobrem que as circunstâncias não oportunizam a escolha. É agir, reagir, não matar, não surtar e não morrer. É pressão mental, pressão social, pressão institucional e pressão financeira.

Alguns dirão: a natureza da profissão sempre foi esta e quando do seu ingresso nas instituições, deveria saber o que estaria exposto. Outros conflitarão: há carreiras desafiadoras para pessoas que se propõem enfrentá-las, mas, antes da vontade e coragem que caracterizam os profissionais da segurança, há o anseio natural pela qualidade de vida, condições de trabalho e dignidade no exercício da profissão.

Como evitar se envolver em ocorrências complexas se o cotidiano demanda intervenção das forças do Estado? Como “escolher” não estar vulnerável a toda sorte de risco se o policial é quem representa esse Estado?

Fato é que, a multidão que se formou no centro da na capital mineira não luta apenas pela recomposição salarial. Tratou-se da gota d’água para armar a bomba que representa um conjunto de elementos que corroem a saúde mental dos policiais. Em razão da pandemia, a crise econômica se aprofundou e os problemas sociais de toda ordem vieram à tona com mais força. O muro de contenção das questões sociais é alicerçado pelo conjunto de políticas sociais que envolvem a educação, a saúde, a assistência social, a previdência e também a segurança pública. Se mais pessoas adentraram à linha da extrema pobreza; se mais pessoas se encontram em situação de vulnerabilidade ou risco social e econômico; se os empregos não se mantêm ou não são criados; se os preços dos itens da cesta básica só aumentam e se a resposta pública não alcança a demanda; o fim último dos conflitos comunitários desembocará, sem dúvida, nas estruturas policiais locais.

Estejamos alertas: a segurança pública é a única categoria em que os profissionais correm em direção ao alto risco à própria vida para proteger outrem ou, seu patrimônio, por missão determinada pelos legisladores (deputados). Que cumpre à risca o que o governante escolhido pelo povo decide sobre o Estado. Que recebe duras críticas por cumprir ordens e que leva todo o ônus por isso. Que, por medida de segurança, evita mostrar à população o quanto é complicado fazer segurança pública. E isso, infelizmente, não deixa que o povo enxergue o que há por detrás da farda, do distintivo ou dos muros das instituições.

Embora não seja amplamente difundido, as forças de segurança têm trabalhado no limite de suas capacidades. Nesse sentido, como defendem as entidades classistas, o descumprimento do acordo do governo com a categoria é como um dedo no gatilho: risco real de aprofundamento da crise.

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