De soldado (1991) a Major (2021) da PMMG: a trajetória e protagonismo de Levina Márcia

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Juliana Lemes da Cruz.
Doutoranda em Política Social – UFF.
Pesquisadora GEPAF/UFVJM.
Coordenadora do Projeto MLV.
Contato: julianalemes@id.uff.br

Era tempo de redemocratização do país, marcada pela promulgação da Constituição Cidadã em 1988, condição fundamental para que a mulher, finalmente, fosse reconhecida como sujeito de direitos, o que a oportunizou sua admissão em carreiras públicas com requisitos similares aos dos homens. A instituição que admitia apenas moças solteiras passara também a admitir as casadas, com filhos, mas com profissão comprovada. Foi o suficiente para que, em 1991, Levina Márcia, aos 24 anos, datilógrafa, se candidatasse ao cargo de soldado da Polícia Militar de Minas Gerais (PMMG).

É com imensa satisfação que descrevo a trajetória dessa mulher que foi a minha principal referência profissional na instituição que há mais de uma década, eu também passei a integrar. Começo por aqui, com uma de suas frases: “[…] que nos limita somos nós mesmos. Ninguém tem esse direito, não podemos delegar esse direito a ninguém. Só a gente, com a graça de Deus, é quem sabe, o que a gente pode ou não”.

Assim como eu e a Joseli Lima, que teve sua história contada na edição da última semana https://diariotribuna.com.br/?p=18249, Levina também foi mãe na adolescência. Em tempos ainda mais desafiantes, com 16 anos, soube que o Júnior estava a caminho. Ele nasceu em 1983, antes dela completar o antigo 2º grau. Já casada com o pai do seu filho, teve a Riane em 1988. Com suas crianças pequenas, não trabalhava fora, mas, sabia costurar, fez curso de manicure no SENAC e dava aulas particulares de português e matemática. Iniciou o curso de Letras na UNIVALE em 1990. Um encarte de jornal foi o divisor de águas na sua vida.

“Estava em casa, chegou um conhecido da família com um encarte de jornal falando para mim assim: Lé, está aberta a inscrição pra polícia. Eu falei: eu não posso não, Wellington, porque eu sou casada. Ele falou: Não, abriu inscrição para casada, tem que ter só uma profissão”, contou Levina.

Nesse meio tempo, Levina fez um curso de datilografia, se inteirou dos requisitos para ingresso no curso e decidiu concorrer com 1.940 candidatas a uma das 50 vagas. Foi aprovada em 14º lugar, “[…] fui com a cara e a coragem para Contagem (região metropolitana de Belo Horizonte). Foi a 1ª turma que incluiu soldados mulheres na PM”. O ano era 1991. Com o apoio da família e do esposo – militar da banda de música da PM –, deixou seus filhos de 7 anos e 2 anos e meio em Governador Valadares. O retorno da recém-formada Soldado Levina se deu em janeiro de 1992. Em junho do mesmo ano foi a única mulher a fazer o curso de Cabo – agosto a dezembro. Em outubro de 1993 prestou concurso para Sargento. De volta à capital mineira, fez o curso de fevereiro a junho de 1994. Retornou para GV e foi a primeira mulher da cidade a comandar uma viatura PM. Passados alguns anos, já que a progressão na carreira demorava bem mais do que atualmente, ingressou no Curso de Habilitação de Oficiais e cursou de fevereiro a dezembro de 2008.

Em meados daquele ano a 2º Tenente Levina se apresentou em Teófilo Otoni, onde, em 2009, foi a primeira chefe de curso mulher do Curso de Formação Especial de Sargentos – CEFS, e 1ª policial feminino como professora de Ordem Unida, chegando à promoção de 1º Tenente no final de 2012, no local em que serviu até março de 2015. De volta a GV, trabalhou no COPOM, P5 do 43º Batalhão e assumiu o comando da Companhia Escola. Em 2019 chegou ao posto de capitão, tendo pendurado o coturno em fevereiro de 2021, já como Major PM na 8ª Região.

Curiosamente, Levina viu seu filho se formar soldado da PMMG na mesma Companhia Escola em que ela trabalhava como monitora de turma em 2002. Coincidentemente ou não, em 2020, quando ele se formou sargento, ela era a Comandante da Companhia Escola.

Ressalta com orgulho que, com toda a dificuldade imposta à condição de mulher e mãe numa sociedade caracterizada pelas desigualdades entre homens e mulheres, foi aprovada em seis concursos: soldado, cabo, sargento, EAP para 2º sargento, CHO e EAP para capitão. Quanto à vida pessoal, esteve casada por 16 anos e divorciada por 18. Há 7 anos casou- -se com o Matheus (Sargento da PM), com quem partilha momentos com seus 6 netinhos (Caio, Melina, Malu, Cleo, Dante e Liam), filhos do Júnior com a Geisa e da Riane com o Augusto, além do Gustavo, “neto do coração”.

Destaco, sem medo de parecer exagero, que a “Tenente Levina” deixou “órfãs” dezenas de policiais femininos do 19º Batalhão, sediado em Teófilo Otoni. Impera dentre aquelas que foram por ela instruídas, o consenso de que foram acolhidas com carinho incomum aos ambientes de caserna, historicamente tão rígidos. Sei que meu relato é demasiado suspeito, uma vez que fui uma das “suas meninas” – como chamava suas subordinadas hierárquicas. Só quem conviveu com a então Tenente Levina sabe dizer o quão significativo foi para cada uma ter sido orientada e acondicionada sob suas “asas”. À época, a oficial se colocava como uma liderança feminina que passava, especialmente, as recém-formadas policiais, a firmeza de quem as conduziria pela mão pelo caminho mais seguro. Mesmo após quarenta anos de inserção da mulher na PMMG, ainda é um imenso desafio ocupar espaço na instituição e no imaginário social como autoridades legitimadas pelo Estado. A tenente Levina nos ajudou a lidar com isso.

Confesso, por fim, que a Sra. Major Levina foi um exemplo de profissional que cumpriu suas missões sem deixar de observar o alcance das suas ações na vida das pessoas. E esse é um princípio que, a meu ver, diferencia pessoas que se comportam como humanos de pessoas que se comportam feito máquinas (programadas e sem empatia). Mulher corajosa, que se posicionava diante do que considerava injusto, que assessorava seus comandantes [homens] para a observância das particularidades das mulheres, e que por meio de sua postura firme e ao mesmo tempo delicada, encorajava outras mulheres a enfrentar os desafios de ser mulher em uma instituição bissecular essencialmente masculina. Ela ensinou a muitas das policiais o quanto é necessário e possível que marquemos posição sem que percamos nossa essência, preservando hierarquia e disciplina, pilares da profissão. Muitas das posturas por mim assumidas ao longo de minha trajetória devo ao exemplo dessa profissional e de muitas outras que chegaram antes, quebraram os primeiros paradigmas e conquistaram o protagonismo que hoje, também reconheço em mim.

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