Em tempos de reflexão sobre as implicações de episódios do passado para o desenvolvimento das gerações futuras, celebrar os 150 anos do município de Itambacuri não deve estar limitado às comemorações festivas de 13 de abril. A rica história, oral e documentada por meio de registros fotográficos, vídeos, relatórios, artigos e livros dispensa o habitual romantismo ao se tratar do aniversário de um município, mesmo que ele seja sua terra natal.
Como itambacuriense que sou, decidi expor um breve relato pessoal sobre esta minha condição, já que me é legítima. Antes disso, dizer o quão simbólico foi conhecer e reconhecer minha gente por meio dos atentos olhares das fontes que mais consultei para ter acesso a uma história que não fui apresentada na escola. Falo dos pesquisadores Izabel Missagia; Márcio Achtschim; Geralda Chaves; Cézar Moreno; Wallace Moraes; Eduardo Ribeiro; e do Grupo de Extensão e Pesquisa em Agricultura Familiar (GEPAF/ UFVJM). Suas publicações colaboram com o fortalecimento da memória regional. Afinal, a função dos registros é documentar a história que tende a se perder se limitada à difusão oral (falado). A riqueza das vivências e saberes partilhados oralmente é incontestável, mas, pessoas passam em algumas décadas, documentos perduram por gerações, preservando as memórias dos que já se foram.
Com pouco mais de 20 mil habitantes, Itambacuri está distante 30km de Teófilo Otoni, o município polo regional. Está localizado no Vale do Mucuri (territorialmente) e no Vale do Rio Doce (bacia hidrográfica), comportando uma das celebrações católicas mais tradicionais da região: a Festa de 02 de agosto, em homenagem à sua Padroeira: “Nossa Senhora dos Anjos”. No período de sua formalização, no final do século XIX, destacava-se no Brasil uma espécie de política de extermínio dos povos indígenas por parte dos colonizadores, a fim da conquista de novos territórios. Na região de Itambacuri, indígenas resistentes fugidos de conflitos adentraram as densas florestas das regiões do Rio Doce e Mucuri, espaço em que foram alvo de cruel violência contra seus corpos e sua cultura.
Os autores de livros tradicionais sobre a história do município, quando passam pelo assunto, o fazem de forma breve e superficial, sem ênfase no massacre dos povos originários. No transcurso dessa secular história, também foram destaques: a derrubada das matas; a caçada, captura e matança dos indígenas – os borum, pejorativamente nomeados de “botocudos”, bem como a cultura que os envolvia; e mais tarde, a exploração de pedras preciosas.
Fato é que o projeto inicial de mais de um século tem se cumprido, com raros, mas, louváveis esforços em contrário. Temos perdido nossas memórias. Sem clareza sobre minha própria história e de meus antepassados, muita coisa foi sepultada junto de quem as viveu. Só sei que ouvi que minha bisavó foi “apanhada no laço” – uma referência à captura de crianças indígenas.
Na minha infância, as turmalinas que meu avô guardava na gaveta chamaram minha atenção. A combinação do cigarro com o insalubre ambiente da mina que ele cuidava, destruiu seus pulmões. Vô Nelson era preto, negro retinto e analfabeto. Foi um dos tantos que extraindo riqueza, não ficou rico. Morreu pobre e administrando o salário mínimo da aposentadoria por invalidez. Ainda assim, não se cansava de me dizer: “Estuda minha filha, estuda! O estudo é a única coisa que ninguém te toma”. Cresci com esse conselho como um mantra. E, errado, o velho Nelson não estava. Hoje, imagino quanta rasteira o caboclo deve ter levado por não ter sido sujeito letrado ou, no mínimo, malandro.
Nasci e vivi pouco mais de uma década da minha infância em Itambacuri. Segui os passos da família que honrava a tradição da conhecida cidade franciscana, de tradição católica e marcante para religiosos de toda região. Passei pela catequese e sonhava em estudar no Colégio Santa Clara. No passado, a reconhecida escola de meninas, administrada por freiras. Jamais estudei no “Colejão”, mas sim, no antigo Ginásio. Hoje, na escola CEPI. Minha primeira infância passei na Escola Frei Gaspar de Módica. Lá foi onde estudei com colegas de mundos muito diferentes. De um lado, a menina rebelde, órfã de mãe, abandonada pelo pai e criada com a avó em um barraco de dois cômodos com mais três irmãos menores. De outro, filhos das famílias mais tradicionais da cidade, comportados, ou, mimados demais, herdeiros das referências de latifundiários e políticos locais.
Morei fora de Itambacuri de 1997 a 2005. Retornando, atestei alguns avanços e a persistência da política de apagamento das memórias pouco convenientes para alguns que documentavam os fatos históricos. Eu, como itambacuriense, alfabetizada e iniciada nos estudos fundamentais na cidade, não conhecia versões não romantizadas da história de formação da minha gente. Só lia sobre glórias, conquistas, riqueza e beleza. Um mundo paralelo que se chocava com a dura realidade da época. Somente na faculdade tive acesso ao que nunca havia imaginado. Conhecer a história de onde somos e/ou de onde vivemos nos ajuda a interpretar as relações em sociedade. Sabendo onde pisamos, elaboramos as perguntas e chegamos às respostas.
Conhecer a história nos permite a compreensão de questões históricas aos municípios interioranos, como em “Ity”: a violência em razão da polarização político-partidária; a camuflagem da pobreza como vergonha individual; os conflitos agrários, com avanço dos grandes sobre os pequenos; a intensa migração populacional (irregular) para o exterior, especialmente Portugal e Estados Unidos; a negação da desigualdade socioeconômica por parte dos próprios marginalizados/pobres; e a cultura clientelista, que naturaliza a troca de favores, misturando o que é privado com o que é público. Desmontar o que ainda persiste sob nova roupagem não parece tão simples. Mas, reconhecer as lacunas já constitui um passo importante para que, ao menos, possamos romantizar uma Itambacuri melhor para se viver ao longo dos próximos 150 anos.