A seletividade da saúde pública brasileira: engrenagens da máquina estatal

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Juliana Lemes da Cruz
Doutoranda em Política Social – UFF. Pesquisadora GEPAF/UFVJM. Coordenadora do Projeto MLV. Contato: julianalemes@id.uff.br

A crise de governabilidade gerada no pós 1988 garantiu espaço para uma série de omissões, que ganhou respaldo diante do desenho constitucional brasileiro. Nota-se, pela realidade do dia a dia, que o federalismo cooperativo está longe de ser alcançado. Por um lado, desigualdades financeiras, técnicas e de gestão, por outro, um sistema competitivo, caracterizado por múltiplos centros de poder e a dependência político-financeira entre esferas de governo, que confere protagonismo às disputas entre estados e municípios. Essas relações geram conflitos políticos onde, no centro, encontra-se a população. E nesse contexto, são aprofundadas as desigualdades inter e intrarregionais. A partir dos anos 2000, ocorreram regulamentações no âmbito das políticas sociais, especialmente de saúde, educação e assistência social, atribuindo mais responsabilidades aos estados e municípios, sem que fossem criados mecanismos que possibilitassem recursos para a garantia das ações demandadas.

Acrescido a isso, a Lei de Responsabilidade Fiscal, a redução dos repasses aos Fundos de Participação de Municípios e Estados (FPM/FPE), a Desvinculação de Recursos da União (DRU), a aprovação do congelamento dos gastos por 20 anos (EC 95/2016), dentre outras medidas de redução de gasto público, ajudaram a desmontar políticas sociais que hoje, se não estranguladas, minimizariam os estragos causados pela pandemia de COVID-19. Nesse cenário, os gestores municipais encontram-se limitados quanto às iniciativas preventivas, desempenhando majoritariamente função reativa, de resposta à demanda emergencial e assistência pontual aos casos graves que exigem investimento dos parcos recursos humano, logístico e orçamentário disponíveis. Talvez por isso, parcela da população considere o SUS como um sistema de saúde falido.

Constitucionalmente, “a saúde é direito de todos”, universal e não contributiva. Isso significa que, qualquer pessoa que precisar do serviço de saúde público será atendida, independente de prévia contribuição. No entanto, os constituintes não deixaram claro na Carta Magna como o mercado de saúde seria, nesse contexto, posicionado. Preservada esta lacuna, o setor ganhou espaço e atualmente, o estado brasileiro gasta mais com incentivos aos setores privados de saúde do que com a saúde pública. Há subfinanciamento federal do SUS e isso reflete na deficiência estrutural que sacrifica, principalmente, as camadas mais pobres da população. A partir dos anos 1990 houve crescimento dos subsídios públicos federais ao mercado de seguros e planos de saúde, caracterizado por renúncias fiscais, extensivo ao setor fármaco; o cofinanciamento público dos planos de saúde por meio do custeio de parte das despesas de servidores públicos e/ou privados organizados; e a dispensa de ressarcimento ao SUS por estas empresas financiadas com dinheiro público. Toda esta manobra, para fomentar a saúde de forma seletiva, retira a possibilidade de melhor prestação de serviços aos 70% de usuários exclusivos do SUS e direciona o melhor padrão de atendimento aos 30% que utilizam planos de saúde privada. O mercado de saúde, que tem sua expansão subsidiada pelo poder estatal, deveria atuar no segmento de saúde complementar, mas, vem assumindo a responsabilidade constitucionalmente atribuída ao Estado.

Segundo dados do relatório “Aspectos Fiscais da Saúde no Brasil”, publicado em 2018 pelo Banco Mundial, o Brasil gasta cerca de 8% do Produto Interno Bruto (PIB) com a Saúde. Deste montante, 4,4% são relativos aos gastos com a saúde suplementar (55%), subsidiando planos de saúde e aquisição de medicamentos. O restante, 3,8% do PIB, representa a fatia destinada ao SUS (45%). Deste modo, o Brasil segue na contramão de países desenvolvidos, onde o maior gasto com a saúde é atribuído ao setor público. Ao longo das últimas duas décadas, o desmantelamento do SUS foi impulsionado pelas investidas de setores do mercado que estão representados na instância legislativa federal, o que evidencia o quanto o orçamento público é um mecanismo político, e não apenas técnico, como muitos pensam. Diante desta pandemia, o SUS assumiu papel central. A possiblidade de monitoramento e controle da disseminação da doença por todo o território nacional só foi possível porque o Brasil detém como instrumento, o Sistema Único de Saúde, que tem mapeada a localização das famílias de cada território. A Estratégia Saúde da Família representa, neste contexto, uma potencialidade, uma vez que, em muitas realidades, é o único serviço público que chega nas comunidades. Apesar disso, o governo brasileiro não elaborou um protocolo único para atendimento dos usuários, deixando a cargo dos Estados e municípios a condução desse procedimento.

Conforme visto, ao longo das décadas o sistema de saúde público foi desmantelado, e por isso, mesmo com recursos emergenciais disponibilizados em razão da pandemia de Covid-19, os gestores e equipes dos governos terão expressivas dificuldades no enfrentamento desse problema. A pandemia desafia o Estado brasileiro, por meio dos governos, à tomada de novas posturas frente ao SUS. Os municípios não dispõem de estrutura organizada capaz de responder à demanda. Esta missão requer, além do planejamento das ações, o reconhecimento das limitações estruturais, especialmente relacionadas aos espaços físicos, à logística, ao treinamento dos recursos humanos para a assistência e o monitoramento das respectivas atividades, concomitante ao monitoramento do comportamento da doença na população. A articulação do SUS como peça fundamental durante esta pandemia, demandará estratégias deslocadas dos parâmetros conhecidos. Trata-se da urgência das decisões, desburocratização e celeridade dos processos, cooperação entre os diversos atores sociais e o recrutamento de recurso humano com capacidade técnica compatível à condução responsável da situação de crise sanitária e humanitária a qual estamos imersos. Sem conhecer minimamente como se movimenta a máquina estatal, dificilmente as linguagens alcançarão o alinhamento que o momento exige. (Texto completo publicado no Boletim COVID19/UFVJM, ed.9. http://api.covid.souzaguedes.com.br/arquivos/download/21).

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