Ouvindo estórias…

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Aníbal Gonçalves – Pedagogo

Sou um desses sujeitos de sorte que não possui razão de se queixar da infância que teve. Menino criado solto, na “larga” das ruas coroacienses, ainda pouco frequentadas pelos carros e disputar peladas no Largo da Igreja [de Sant’Anna, em Coroaci], sob muitos pitos do senhor Vigário. “É que lá vem ‘Anival’ e André e Pelé e meninos da “Nêgo Marinho” [este, meu irmão] de dona Conceição e moleques sujar paredes da igreja”, gritava a plenos pulmões com seu carregado sotaque o saudoso italiano padre José Paradiso.

O maior risco que corríamos era quebrar um braço ou uma perna ao saltar dos muros ou cair de mau jeito do galho de uma árvore ao roubar frutas em quintais alheios. Ah, havia também pairando sobre nossas cabeças a eventual ameaça de uma surra de criar bicho aplicada pelo cinturão implacável do pai “Gonçalinho” [José Ramos Gonçalves] depois de perpetrar uma danação daquelas.

Afora isso, depois de nos livrarmos da prisão da escola estadual Dom Bosco e da chatice do dever de casa, tínhamos o resto do dia para desfrutar da imensa liberdade que os meninos de hoje desconhecem, coitadinhos.

Quando aprendi a ler, a saber mais das coisas do mundo e da vida, um dos meus lugares preferidos era o salão da barbearia do “Diógenes da dona Nicinha”. Até hoje guardo intacto na memória aquele local mágico, uma fonte inextinguível de novidades que saciavam muito da minha sede de infantil curiosidade.

E aqui em Teófilo Otoni, num singelo reconhecimento me lembro dos salãos do “Patricios Cabeleireiro”, Bené e Batista”, e do “Seu João” [ali no Beco do Paraguai, onde tem a Vine Presentes, do “João de Cida”]. Mas lá em Coroaci, na rua Antônio Pereira Ramos, no salão do Diógenes, dominando o ambiente, reinava a grande cadeira de barbeiro da conhecida marca Ferrante, de uma cor negra, lustrosa na qual tantas vezes me sentei para cortar o cabelo e me sentir tão importante quanto um adulto, embora dali saísse de cabeça quase pelada, um mais que eficaz preventivo contra os piolhos que costumavam infestar a meninada.

Defronte à imperial cadeira, havia um grande espelho a refletir imagens como o olho de uma câmera espiã.

Abaixo dele, um móvel de jacarandá, onde repousavam os instrumentos de trabalho do Diógenes. Os vidros de loção, os potes de Brilhantina, os pincéis, tesouras, navalhas, os aventais, toalhas de um branco imaculado certamente alvejadas por “Dona Nicinha”, os pentes de variados tamanhos, o espelho de mão para que o freguês pudesse apreciar o resultado do corte da cabeleira sob os mais diversos ângulos.

O Diógenes cuidava de tudo, da limpeza à contabilidade, além da sua constante presença impor ordem e respeito dentro do estabelecimento. A um canto, perto da janela, um rádio de válvulas sobre uma mesinha irradiando música e noticiários para distrair a freguesia enquanto se cumpria o masculino ritual da barba, cabelo e bigode.

Ninguém entendia muito bem que motivo levaria um menino à permanecer tanto tempo naquele ambiente, sentado muito quieto numa cadeirinha, sempre com um livro de Cordel nas mãos. Se me perguntavam o porquê de eu estar ali ao invés de estar brincando com outros garotos, eu dava respostas evasivas, qualquer uma que me viesse à cabeça, menos a única e verdadeira. E mesmo se eu a contasse, dificilmente alguém acreditaria que estava ali apenas para ouvir as histórias da vida real que os fregueses comentavam com o Diógenes. Fofocas da vizinhança, da política local e fatos do cotidiano que eu escutava atento como se ouvisse contos de aventura.

O salão de barbeiro mais parecia uma redação de jornal, de tão povoado de notícias. Mal sabia eu que ali, no salão de barbeiro do Diógenes, de tanto ouvir histórias, estava aprendendo a escrevê-las.

Aníbal Gonçalves é pedagogo, graduado em Administração Escolar, ex-diretor da Escola Estadual de Coroaci – MG [hoje Dona Sinhaninha Gonçalves] e professor de Filosofia, Sociologia e História da Educação. Foi chefe do Departamento de Educação Cooperativista da CLTO. Atualmente, jornalista e radialista da 98 FM (Teófilo Otoni).

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