No final do mês de agosto, viajei para Cuba com os meus pais. Foi a primeira vez deles a bordo de um avião. Afinal, além de não terem tido as oportunidades que tive, eles não se enxergavam nesse lugar de viajante aéreo. O assento na janela não simboliza menos que a possibilidade de mudança de consciência sobre os lugares que podemos ocupar no mundo. Tínhamos um bom motivo: cumprir o combinado de visitar amigos cubanos, fruto do Programa Mais Médicos, criado em 2013 e que mantinha por cerca de 3 anos sob contrato de trabalho, médicos estrangeiros. Meus pais sempre se mostraram resistentes quando o assunto era viagem de avião. A celebração dos 40 anos de casamento deles em 2024 seria o momento ideal. Lancei a ideia e surpreendentemente, eles toparam viajar. Para não recuarem, rapidamente, agilizei as burocracias.
Quando já estávamos por lá, percebi que muita coisa havia mudado desde que eu havia visitado o país em 2015. Pois bem, nesses nove anos de intervalo, aconteceram nada menos que a pandemia de Covid-19, que afetou gravemente mesmo os países mais desenvolvidos, além da tensão/guerra entre Rússia e Ucrânia. Vale lembrar que a Rússia coopera com o governo cubano desde quando ainda era União Soviética (1922-1991), tendo sido o esteio do país pós-revolução de 1959, período em que o governo dos Estados Unidos, que não conseguiu o domínio da ilha caribenha, estabeleceu um bloqueio econômico que fez com que Cuba, praticamente, parasse no tempo.
Afinal, o país além de não ser autorizado a usar tecnologia norte-americana ou comercializar com a potência, sofreu embargo que afetou/impediu relações comerciais com outros países, sob pena do estabelecimento de medidas restritivas também aos países que insistissem em comercializar com Cuba. Para começar, ao chegar no aeroporto internacional José Martí, na capital Havana, meu pacote de dados de internet funcionou normalmente usando o chip do Brasil. O “chofer” enviado pelo dono da habitação que alugamos para descansarmos nas primeiras horas da manhã, já estava nos esperando na saída. No caminho, notei muitos postos policiais em funcionamento, mesmo sendo madrugada.
A partir daquele momento já comecei a perceber que Cuba de 2024 não é mais que Cuba que visitei em 2015. Ficou evidente os impactos, tanto da pandemia, quanto do aprofundamento da tensão geopolítica no cenário que encontramos naquele país entre os dias 19 e 24 de agosto. Para qualquer brasileiro, um verdadeiro intercâmbio cultural. Diferente do que vivenciei na minha primeira visita a Cuba, encontrei um país com uma economia devastada. O calor continuava intenso, mas, vimos poucos turistas pelas ruas e baixa movimentação de “almedrones” (carros de passeio) ônibus e outros transportes de passageiros.
Senti falta da música típica ao vivo, dos vendedores de amendoim e de charuto, e das enormes tendas de livros ao longo das calçadas. As ruas já não estavam atrativas. Problemas associados à limpeza urbana e saneamento básico eram realidade na capital. O cenário era de ambiente descuidado e povo em situação de vulnerabilidade e/ou risco social. O ambiente tranquilo e seguro de 2015 deu lugar a um retrato que percebi logo no primeiro dia. As portas das habitações tinham grades. Nem parecia aquele lugar que eu caminhava por 4 quarteirões após as 22 horas, sozinha, com meu notebook embaixo do braço, do local onde havia WiFi (Hotel Habana Libre), até a habitação que eu e um casal de amigos ficamos durante alguns dias de um evento acadêmico, em 2015.
Apesar do contraste gigante, apresentei aos meus pais tudo que consegui mostrar de agradável e bonito do país. O paralelo que faço aqui entre os dois períodos, são a cargo das minhas observações particulares. Ficamos três dias nos arredores da capital e um dia, tiramos para almoçar e trocar um dedo de prosa com os amigos do interior, distantes 300 km de Havana. Fomos até a Província de Villa Clara, mas, sem demora. Lá, ouvimos que a crise não chegou ao interior com a intensidade percebida em Havana. Crise que se estendeu aos combustíveis. Assim, fretamos um único táxi para ida e volta. Foram produtivas e animadas 3 horas de ida e 3 horas de volta trocando informações sobre nossas famílias e ouvindo sobre a vida em Cuba, como o país mudou após a pandemia, a introdução da internet via dispositivos móveis, além da dimensão da crise econômica pela qual os cubanos passam.
No campo da educação, que já foi referência global, há crianças sem estudar por falta de pagamento dos professores. A caderneta para acesso mensal a alimentos (como se fosse uma cesta básica), está em desuso há um bom tempo, pois as “bodegas” (onde se retira os produtos), estão desabastecidas de alimentos essenciais. Nos hospitais, faltam insumos, medicamentos e até anestésicos. Entre 2022 e 2023, apenas rumo aos Estados Unidos, mais de meio milhão de cubanos deixaram a ilha. É o maior êxodo desde a revolução de 59. Como a autorização governamental não é simples ou por não terem como custear a viagem, muitos acabam se arriscando na travessia via mar.
Em 2015, Raúl Castro presidia o país. Fidel havia se afastado, tendo morrido no ano seguinte. Em 2024, o governo é de Miguel Díaz-Canel, que parece não estar lidando bem com a situação do país, que tinha como base da economia, o turismo. Pelo que ouvi, no período de Fidel Castro a população também tinha problemas, mas, seu governo sempre dava um jeito de não deixar o povo em apuros, atendendo as necessidades básicas. Já o atual presidente, não.
O acesso à informação também foi algo crucial para a compreensão dos cubanos sobre a liderança do regime (de partido único). A escalada da crise gerou manifestações populares, que foram reprimidas pela força nacional. Com a inflação nas alturas, 1 dólar equivale a cerca de 300 pesos cubanos, quando o salário-mínimo mensal está em 3.000 pesos. Ou seja, 10 dólares ou, o equivalente a 56 reais/mês. Em 2015, quando se fazia menos uso de dólar, mais de euro e em Cuba circulavam duas moedas (peso e CUC), 24 pesos era o equivalente a 1 real. 1 CUC corresponde a 1 euro, a mais usada pelos turistas. Hoje, 1 real vale quase 60 pesos cubanos.
Nesse cenário, há escassez de alimentos ou alto custo deles. Para exemplificar, uma cartela de ovos custa por lá 3.100 pesos. Assim, se por um lado, “turistar” nos poucos dias que reservamos ficou bem caro pela dificuldade de transporte, por outro, ficou relativamente barato no que se refere à alimentação. Para meus pais, como eu já imaginava, tudo era muito diferente. Desde a culinária (lagosta, o “congrí” – feijão cozido com arroz –, abacate em todas as refeições do dia, e “chicharrita” – banana verde frita), até a surpreendente alegria das pessoas do lugar, apesar das limitações que vivem. Por lá, o idioma não foi um problema. Pelo contrário, foi motivo de boas gargalhadas. Sobre as praias, dispensam comentários. Sobre os cubanos, gentis e prestativos, assim como a maior parte dos brasileiros.
Enfim, foi uma imersão cultural, que, só vivenciando de perto para que se produza a crítica particular sobre como é o mundo desde aquela ilha, marcada por um sistema político tão diferente do que estamos habituados no Brasil. Lembro-me de uma conversa que tive com um taxista cubano em 2015. Ele reclamava do fato de alguns que trabalham e pagam seus impostos terem que custear o sustento de outros que não trabalham e não pagam impostos. Dizia não concordar com aquele sistema, apesar de o governo [Fidel] não deixar as pessoas desamparadas. Aquele senhor, tão bem esclarecido sobre a geopolítica global, afirmou: “no mundo, nem o capitalismo, nem o socialismo deu certo. Há que se pensar novas formas de se viver”.