O número de boletins de ocorrência policiais de registro único superou 86% dentre os crimes de feminicídio íntimo consumado em municípios do Vale do Mucuri, em Minas Gerais, entre os anos de 2016 e 2020. Isso quer dizer que a grande maioria das mulheres assassinadas por seus parceiros ou ex-parceiros íntimos nunca haviam comunicado oficialmente à polícia que sofriam violência doméstica. Ressalta-se que a maioria dos boletins indicam que existiu violência anterior, de conhecimento, especialmente de familiares da ofendida e do autor.
O feminicídio íntimo constitui o último estágio de um continuum de violências sofridas por mulheres no âmbito das suas relações íntimas de afeto. Aqui, a intenção foi apresentar um recorte dos crimes de feminicídio nas formas tentada e consumada registrados em 9 dos 20 municípios distribuídos em 5 comarcas (gráfico).
Foram analisados 42 boletins de ocorrência, sendo 15 referentes aos crimes de feminicídio consumado e 22 quanto às tentativas, o que somam 37 registros com natureza “homicídio” com indicativo de violência doméstica contra a mulher; além de outros 5, localizados nos autos de processos judiciais com a definição de lesão corporal grave ou de homicídio tentado ou consumado de mulher, mas, sem a inserção da natureza secundária para indicação de se tratar de crime relacionado à violência doméstica.
Os dados dão conta de que os crimes de feminicídio íntimo registrados nos boletins policiais, ocorreram nos municípios de Águas Formosas, Ataléia, Fronteira dos Vales, Ladainha, Malacacheta, Nanuque, Pavão, Serra dos Aimorés e Teófilo Otoni.
Os anos de 2016 e 2017 foram os mais violentos para as mulheres do Vale do Mucuri até o pós-pandemia de Covid-19, quando houve um destaque (aumento) entre os anos de 2022 e 2023 na macrorregião que também engloba parte do Vale do Jequitinhonha.
Quanto ao lugar de ocorrência, 45% dos feminicídios tentados aconteceram dentro de casa e outros 45% aconteceram em via de acesso pública. No caso dos feminicídios consumados, algo muito parecido aconteceu. Registrou-se que os assassinatos ocorreram em 46,6% dos casos, em casa. Reafirmando estudos nacionais que apontam a casa como lugar inseguro para as mulheres.
Quanto à faixa horária, 60% dos feminicídios consumados aconteceram durante o dia, entre 6 e 18 horas, nos períodos matutino e vespertino. O inverso do que apontou o cenário nacional, que registrou os feminicídios no período noturno (FBSP, 2021). No caso dos feminicídios tentados, os registros ocorreram em 77,2% dos casos, entre 18 e 06 horas, durante a noite e madrugada.
Quanto ao dia da semana em que ocorreram os crimes, 45,4% dos casos de tentativa de feminicídio aconteceram aos finais de semana, ou seja, sexta, sábado e domingo. Assim, em 54,5% dos casos, as tentativas aconteceram em dias de semana (segunda, terça, quarta ou quinta feira). No caso dos feminicídios consumados, 53% aconteceram nos finais de semana e 47% nos dias de semana.
Quanto à causa presumida para o cometimento do delito, 53,3% dos registros de feminicídio íntimo consumado e 45% de natureza tentada, indicaram que o crime teve causa presumida passional. Vale lembrar que há discussões importantes acerca do uso inadequado do termo passional – intimamente associado à motivação do crime por amor ou paixão, quando na verdade, trata-se de ódio, desprezo ou poder.
Quanto ao meio utilizado pelo autor nos crimes de feminicídio consumado, em 66,6% dos casos, a arma branca foi utilizada como instrumento. Trata-se de facas, machados, facões, pedaços de madeira, foices, dentre outros perfurocortantes. As armas de fogo foram utilizadas em 20% dos casos. No que se refere aos feminicídios tentados, as armas brancas foram utilizadas em 54,5% dos casos e as armas de fogo, em 27%.
Quanto à faixa etária das vítimas, 73% das assassinadas eram adultas com idade entre 30 e 49 anos. Sendo que, destas, 33% tinham entre 30 e 34 anos de idade. Quanto aos feminicídios tentados, 50% das mulheres tinham entre 30 e 49 anos.
Quanto ao estado civil da vítima, 73,3% das mulheres assassinadas eram casadas ou conviviam em união estável. No caso das tentativas de feminicídio, não foi identificado nenhum registro onde a vítima fosse casada, mas, 50% tinham união estável e os outros 50% eram solteiras ou divorciadas. Este dado informa claramente que aquelas que residem sob o mesmo teto dos seus parceiros são as mulheres alvo dos crimes de feminicídio íntimo.
Quanto à relação vítima/autor, dentre as mulheres assassinadas, 100% delas foram mortas por parceiros (53,3%) ou ex-parceiros íntimos (46,6%). Dentre os feminicídios tentados, os parceiros íntimos correspondem a 50% dos autores de tentativa, 40,9% referem-se aos ex-parceiros íntimos e 9,1%, namorados.
Quanto à cor/raça da mulher assassinada, infere-se que 86% das mortes foram de mulheres pardas, que, conforme classificação do IBGE, eram negras. Dentre os feminicídios tentados, 77% foram consideradas pardas, 9% negras (uma vez que o campo parametrizado do REDS não dispunha, até a conclusão do estudo, em 2023, do termo preta) e 13,6% brancas. Assim como no caso das mulheres assassinadas, 86% das mulheres que sofreram tentativa de feminicídio são negras.
O feminicídio constitui o ápice das violências, muitas vezes, toleradas no âmbito doméstico. Costuma chamar mais atenção se envolve mulheres brancas das esferas de poder e destaque e homens socialmente importantes, o que não ocorreu no período analisado. Na realidade do Vale do Mucuri, foram as mulheres negras, de classe social baixa e em idade produtiva, as mais assassinadas. A totalidade dos homens autores eram negros e de classe social similar à das vítimas.
(Recorte dos resultados da pesquisa de doutorado “Molduras do Feminicídio […] no Vale do Mucuri”, de Juliana Lemes da Cruz, defendida na UFF, 2023).