Sobre mineirices gerais e abstratas

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Luciano Alberto de Castro
Cronista e professor da Universidade Federal de Goiás, é mestre em odontologia pela Universidade Federal de Goiás (UFG), Doutor em ciências da saúde (UFG), Professor adjunto da Faculdade de odontologia da UFG

Erroneamente atribuído a Drummond, o poema “Ser Mineiro” foi escrito pelo patrocinense José Batista Queiroz e é uma ode ao jeito mineiro de ser (acho que Drummond não seria mesmo tão generoso). Queiroz — o escritor, não o fujão — desenha o mineiro com a pena da lisonja e a tinta do regionalismo. A figura que surge é a do ser dotado de esperteza, simplicidade, modéstia, sabedoria e uma desconfiança milimetricamente calculada. O rol das virtudes não para por aí: o poeta ressalta a bravura, a fidalguia e a elegância do habitante das montanhas. O que fala pouco e escuta muito. O apreciador da natureza. O amante da liberdade, das letras e das artes. Ufa! Como é bom ser mineiro.

O poema era uma espécie de cartão de identidade obrigatório em casa de mineiro. Especialmente se o montanhês se encontrasse longe dos seus domínios. Era o nosso caso. Morávamos três mineiros na bucólica Goiânia no início dos anos 80. Obviamente, na parede da república, ostentávamos o nosso RG: lá estava o “Ser Mineiro” em letras garrafais, enquadrado, com moldura e passe-partout. Volta e meia ouvia-se alguém declamando os versos a alguma moça que nos visitava. E a diáspora mineira ia trazendo mais gente. De Pirapora, veio o Rômulo Santos para prestar vestibular para Engenharia. Após ler o texto na parede, o Rômulo afirmou, categórico: “Se ser mineiro é tudo isso aqui, então eu acho que não sou mineiro não”!

Na época, protestei, contrafeito: como não se apropriar de predicados tão nobres? Tudo aquilo era nosso por direito. Porém, hoje, tendo um pouco mais de siso do que aquele “dezoitanista” deslumbrado, eu entendo a recusa do Rômulo em identificar-se com a lavra ufanista de Queiroz. O estro do poeta dera-nos virtudes demais. Além de inverossímil, aquilo tudo poderia nos sufocar. Não tínhamos direito nem a um defeitozinho? Uma imperfeiçãozinha à toa? Precisamos deles. Eu não estou negando a minha raiz fincada no solo dos Gerais: orgulho-me dela. Admito, inclusive, possuir algumas das mencionadas virtudes. Mas aproximo-me mais da pluralidade enigmática de Minas do que da exaltação desmedida.

Drummond escreveu que “Minas não é palavra montanhosa, é palavra abissal”. Minas é antítese. Território do inescrutável. Ao mesmo tempo, luz e mistério (Como diz a música). Numa madrugada fria de julho, estava eu sentado no último degrau da escadaria da igreja de Santa Rita, no Serro. Lá embaixo, a velha cidade ainda dormia. Do alto, eu avistava os telhados de quatro águas, o zimbório das igrejas, as palmeiras, os morros. Era impossível não se emocionar com o belo que emanava da paisagem setecentista. Porém algo nostálgico e triste me rondava. Comecei a ouvir sons. O tropel das mulas. Os cincerros batendo. Vozes. Ouvi o estalar do látego. O gemido dos moribundos. O murmúrio dos loucos. Naquele inesquecível amanhecer, um anjo torto e morador das sombras experimentava o encantamento e a melancolia de ser mineiro. Goiânia, agosto de 2020.

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