O medo

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José Carlos Freire, Professor da UFVJM, Campus de Teófilo Otoni/MG

Na terça-feira da última semana, próximo ao meio-dia, o céu escureceu. Fenômeno típico de final de primavera, uma grande nuvem se formou vindo do norte. É um dos espetáculos mais lindos da natureza. Para mim, no entanto, a admiração frente a uma tempestade vem sempre misturada com o medo. É assim desde a infância, em razão de uma situação traumática na família. Recordo-me que os conhecimentos básicos de ciência natural me ajudaram. Aprendi um pouco do que eram os raios, sua formação, seus efeitos. Até mesmo a calcular sua provável distância pelo intervalo entre o relâmpago e o som do trovão. E aí tinha meu precário método de administração do medo.

Mas agora nem isso servia. Afinal, por que uma tempestade normal, por sinal nem tão grande, incomodava-me de um modo diferente? Para piorar, a preocupação com a segurança dos filhos. Só pude pensar melhor quando a chuva serenou. Encontrei duas explicações. A primeira é que a experiência de paternidade/maternidade nos fragiliza, inevitavelmente. Nossos medos diante de situações diversas se somam ao medo do que elas podem causar aos pequenos.

A segunda mereceu minha reflexão mais demorada: há um contexto específico de pandemia que em graus distintos mexeu com todos nós.  Não é estranho que pesquisas indiquem o aumento da ansiedade e mesmo de doenças mentais na população. O passar dos meses nos ajudou a encontrar uma rotina de convivência com o vírus. Adaptamo-nos. Porém, como um lago subterrâneo que a planície não mostra, lá estão eles a correr em nossa subjetividade: os afetos. De que maneira os temos administrado? Em que medida falamos sobre eles ou os ignoramos?

O medo. Nem de longe um tema novo. Para citar um período recente, todo o século XX esteve marcado de catástrofes, guerras e genocídios. O século atual não vai em direção tão distinta. Os efeitos são de toda ordem, bastando ver como, além da filosofia, autores da psicologia, da sociologia, da ciência política e de outras têm pensado sobre as últimas décadas.

Um nome que esteve na moda desde o final dos anos 1990 foi, sem dúvida, o do polonês Zygmunt Bauman (1925-2017), que cunhou a famosa expressão “modernidade líquida” para se referir ao contexto de virada do século XX para o XXI. Embora de formação sociológica, seus textos foram se convertendo em ensaios reflexivos sobre a condição humana na sociedade contemporânea. Para ele, nosso temor diante da violência, das catástrofes, das epidemias e das guerras gera uma busca insólita por segurança, por sofisticação, por prolongamento da vida etc. Se “líquida” se mostra a existência, também o medo, como água que invade a casa, ocupa todos os espaços.

Como todo autor de sucesso, Bauman atrai fãs e críticos. Importa pouco isso. Cabe mais ver a pertinência do que diz e creio que suas reflexões são valiosas. É certo que não se trata de uma descoberta teórica ou de uma abordagem tão original. Para ficar em um nome do lado de cá do Atlântico, o uruguaio Eduardo Galeano (1940-2015) fez também uma brilhante síntese do mesmo contexto analisado por Bauman: “O medo ameaça: se você ama, terá Aids; se fuma, terá câncer; se respira, terá poluição; se bebe, sofrerá acidentes; se come, terá colesterol; se fala, terá desemprego; se caminha, terá violência; se pensa, terá angústia; se duvida, terá loucura; se sente, terá solidão”.

O conhecimento da história e a reflexão são bons companheiros para qualquer situação. Por isso, da breve sinalização feita é possível tirar duas conclusões. A primeira, menos animadora: o atual contexto de pandemia não cria um sentimento de medo, mas sim o intensifica. Ou seja, nosso temor frente ao vírus se junta a outros que já tínhamos. O que me ajuda a entender porque aquela tempestade de terça-feira me assustou tanto. Os medos vão se empilhando.

Mas há uma segunda explicação, esta mais interessante: embora se apresente com características peculiares, a atual pandemia é, não obstante as milhares de mortes e o comprometimento da saúde dos contaminados, uma situação que será superada, tal como outras foram. Saber disso não apaga nosso medo quanto ao futuro, mas nos ajuda a elaborá-lo melhor.

Penso que a famosa classificação das virtudes do velho Aristóteles ainda conserva validade. Sua ideia geral é a do meio termo, evitando-se os excessos. Nesse sentido, o medo é o polo oposto à imprudência. Entre um e outro está a virtude da coragem. Parece-me um bom indicativo para tempos de pandemia: não é um bom caminho trocarmos o medo pela temeridade, fingindo que nada acontece e colocando em risco a saúde das pessoas que amamos. Isso nada tem de corajoso; está mais próximo da irresponsabilidade. A superação virá pela coragem, uma virtude que conserva parte do medo, como bússola que acusa o perigo; mas que o dosa com a ousadia de quem enfrenta, conscientemente, o mesmo perigo.

Enquanto escrevo estas linhas, chega a notícia da morte do gênio Diego Maradona, o “mais humano dos deuses”, segundo o mesmo Galeano. Das memoráveis cenas, aquela, uma das mais emblemáticas da história do futebol. Copa de 1986. A Argentina, país recém-saído de uma sanguinária ditadura que impôs o terror a toda uma geração e, anos antes, derrotado pela Inglaterra na fatídica Guerra das Malvinas, agora enfrenta esse mesmo país nas quatro linhas. E Dieguito, de baixa estatura, faz erguer uma nação inteira na magia de seus pés (e de sua mão santa!). Naquele dia, Maradona nos ensinou que o medo se supera com a coragem. É assim que enfrentamos os mais temidos adversários, seja no futebol, seja na política, seja na luta pessoal com nossos traumas. É assim que caminhos novos se abrem.

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