LGBTFOBIA: Precisamos tratar urgentemente dessa questão no Vale do Mucuri

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Márcio Achtschin Santos,
PhD em História pela UFMG

Em 1934, Godofredo Ferreira escreveu “Os bandeirantes modernos”. Esse livro procurou retratar a história de Teófilo Otoni e região, apontando diversos dados sobre a formação local. Concomitante às suas narrativas, ele fazia algumas observações sobre costumes e acontecimentos do período. No capítulo intitulado “A cidade de Teófilo Otoni” abre, segundo o próprio Ferreira, um “parêntese”, para descrever a seguinte situação que transcrevo do livro: “Em frente à Rua da Matriz estava o porto onde as lavadeiras do tempo de minha meninice exerciam seu mister. Entre elas, – o que causava enorme escândalo, naquela época de uma moral melindrosíssima apesar das cicatrizes que, quando em quando, lhe faziam os mesmíssimos Cartões que pregavam – era persona gratíssima um lavadeiro, autêntico representante do sexo-feio [grifo nosso]. O Zé de Calu, que metido entre o mulherio, lhe fazia terrível concorrência – que o sexo gentil parecia suportar satisfeito, aliás, – usurpando uma profissão, primitiva quase ainda agora, ‘Saias’. O Zé de Calu era um latagão forte. Espadaúdo. Um homem! Não sei o que foi feito dele”.

Ferreira descreve situações ainda hoje vivenciadas pela comunidade LGBTQIA+. Ao seu modo, fala de cicatrizes, resultado de uma sociedade que vivia as contradições e conflitos ainda hoje não resolvidos. Certamente faz referência àqueles chefes de famílias tradicionais que às escondidas procuravam saciar o seu desejo com o “sexo- -feio”. Por fim, conclui sua narrativa deixando vago o destino de Zé de Calu. Como uma pessoa poderia desaparecer sem dar notícias? Como alguém que chamava tanta a atenção simplesmente sumir?

Segundo a Anistia Internacional, o Brasil é o país que mais mata LGBTQIA+ no mundo. E nesses dados não estão sendo computadas as mortes identitárias: homens e mulheres que são silenciadas e obrigadas a se submeterem à heteronormatividade monogâmica. A própria história oficial recusa trazer em suas referências da galeria de grandes heróis os gays e lésbicas que se notabilizaram nacionalmente. Santos Dumont é o maior exemplo dessa negação. Como se não bastante toda essa trajetória histórica de mortes e apagamentos, tem-se hoje o ataque cotidiano da comunidade LGBTQIA+ nas redes sociais. Violência trazida a público em nome do conservadorismo.

Esse é o grande conflito do discurso atual, que busca conciliar conservadorismo e democracia no Brasil. A democracia carrega como premissa o respeito à individualidade e à diversidade. Se a democracia implica no respeito a todos, consequentemente é atributo de cada cidadão a sua individualidade, qualquer que seja ela. Nesse sentido, a diversidade é um aspecto indispensável à democracia. Mas, coexistindo com o projeto democrático coroado com a Constituição de 1988, há também atualmente o discurso conservador.

Ser conservador significa preservar o que foi construído no passado, assegurar valores considerados necessários à vida em sociedade. A base desse discurso está em conservar as tradições da família. E quem foi essa família desde os anos de 1500? A violência patriarcalista foi a principal característica dessa tradição. Em nome dessa família, por séculos se casavam homens já maduros com meninas que nem menstruavam. Hoje é crime. Por séculos se matou mulheres pela legítima defesa da honra. Hoje é crime.

Através de muitas lutas, e apesar de muito a se conquistar, já houve avanços em relação a esses direitos. No entanto, ainda que existam leis protetivas consolidadas, grande parte da sociedade brasileira reage diante da liberdade legítima e necessária de gays, lésbicas e trans. É preciso que se reconheça a gravidade de postagens em redes sociais com expressões lgbtfóbicas. Publicizações desse gênero não podem ser consideradas como um ponto de vista. Não se está exercendo a liberdade de opinião, pois não se justifica a sobreposição desse tipo de direito em detrimento de outros fundamentais, garantidos pela Constituição Federal e pela Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Transcendendo às questões legais, são postagens que, além de estereotipar, reforçam e pactuam com a violência cotidiana contra a comunidade LGBTQIA+. Violência que é física, mas também psicológica e emocional. Essa brutalidade que se comete no Brasil não escapa à realidade na região do Mucuri. Quer seja no sentido simbólico, quer seja em favor da preservação da vida, não podemos mais admitir que Zé de Calu desapareça.

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