O raso e o profundo da ecologia: reflexões sobre as respostas da natureza aos humanos

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Juliana Lemes da Cruz.
Doutoranda em Política Social – UFF.
Pesquisadora GEPAF/UFVJM.
Coordenadora do Projeto MLV.
Contato: julianalemes@id.uff.br

Diante dos transtornos dos últimos dias, onde a força das chuvas devastou municípios inteiros no nordeste de Minas Gerais e no sul da Bahia, pareceu-me adequado dissertar sobre o meio ambiente como um todo em que os humanos são integrantes e não uma “entidade” externa. Seria mais uma resposta natural às mudanças climáticas se o ocorrido não tivesse deixado tanto estrago: casas no chão, famílias desalojadas, desabrigadas e arrasadas. Em alguns locais, vidas foram soterradas. Podemos dizer em previsibilidade desse cenário? Sim, podemos.

O ambiente natural, não raro, negligenciado e violado em seus limites, mais cedo ou mais tarde responde à ação antrópica (humana). O conjunto de fatores que integram a tomada de decisões sobre o planejamento das cidades denota a profundidade do compromisso dos gestores ocasionais com a qualidade de vida das pessoas a médio e longo prazos. Infelizmente, pelo que percebemos de tempos em tempos, não podemos contar com formas mais técnicas de gestão da vida de toda uma população se basearmos, tão somente, no (des)interesse governamental.

Especificamente no estado de Minas Gerais, os impactos da ação antrópica sobre o ambiente são perceptíveis, nas regiões Norte e Nordeste, que enfrentam, anualmente, situações preocupantes relacionadas à escassez de água. Por outro lado, em períodos remotos, as intempéries que acometem esses territórios podem ser outras, e tão graves quanto, pois envolvem dimensões econômica, social, ambiental e política das regiões.

Deste modo, resta claro que os problemas não podem ser entendidos isoladamente. Assim como defende o teórico ambientalista Fridjof Capra (1996), vivemos uma crise de percepção que exige de cada um de nós, mudanças das percepções, pensamento e valores. As mudanças referem-se à transformação do paradigma, que consiste no rompimento de uma lógica fragmentada ou isolada, de enxergar as questões e de entender o todo.

O professor português Boaventura de Souza Santos (1995) afirma que este pensamento, de um sistema a ser superado, foi fundado a partir do modelo de racionalidade constituído no século XVI, a partir das ciências naturais, e, posteriormente, nos séculos XVIII e XIX, onde foi estendido às ciências sociais emergentes. Um novo paradigma remete à uma visão holística do mundo, numa dimensão ecológica e amplificada do termo. Tal dimensão alcança duas visões distintas: ― ecológica rasa e a ecológica profunda, […] ecologia rasa é antropocêntrica, ou centralizada no ser humano. Ela vê os seres humanos como situados acima ou fora da natureza, como a fonte de todos os valores, e atribui apenas um valor instrumental, ou de uso, à natureza (CAPRA,1996, p.17).

Nesse sentido, a estruturação do universo dá-se no caminho da segmentação entre comunidade humana e natureza, como se o ser humano não fizesse parte da natureza e sim de uma entidade superior aos demais seres, estes, inferiores e, portanto, dominados por aqueles. Esse pensamento permite a compreensão de que tomando como referência a ideia de centro das coisas, o homem explorou e explora demasiadamente os recursos naturais, além de não se reconhecerem enquanto parte da natureza.

Sendo assim, a comunidade humana teria a competência de explorar a chamada “natureza”, de forma que consiga instaurar a sociabilidade e pensá-la enquanto um símbolo ou um suporte (útil). O mundo da natureza, dantes entendida como um todo holístico, após a investida do homem, tornou viável um mundo natural socializado que está dentro dessa natureza como uma espécie de derivação, que passa a ser pensada então, como realidade única. Há planos de mundo negados: a sociedade e o pensamento são os escolhidos e a natureza e o devaneio são os negados. A sociedade, no caso, se traduz sob normas, certo contrato social – como sinalizou o filósofo e teórico político, Jean-Jacques Rousseau, onde o pensamento seria vinculado à razão.

Existe o desafio contínuo e persistente de tratar a natureza de modo que haja uma troca de dons, onde se possa instaurar a ética da reciprocidade, visualizando a natureza enquanto uma parceira e não como objeto de manipulação técnica. Os direitos devem ser pensados para todos os seres vivos e não apenas para os seres humanos, de forma que seja constituído desvinculado do princípio utilitário, no sentido de uma relação de troca. Sendo todos os outros direitos humanos como derivação do direito à vida.

Nesse contexto é necessário que estejamos preparados para enfrentar o que nos é posto e para elaborar questionamentos sobre tudo que nos é colocado. Formular interrogações. Quando Capra diz que a mudança dos paradigmas requer uma expansão não apenas de nossas percepções e maneiras de pensar, mas também de nossos valores, ele vincula o pensamento e os valores, como atrelados à possibilidade da mudança de autoafirmação para a mudança integrativa. Segundo o mesmo, trata-se de tendências, e que quando uma delas é enfatizada em excesso, acontece um desequilíbrio. No campo do pensamento, o reducionista sobre o holístico, o linear sobre o não linear, o racional sobre o intuitivo. Por outro lado, no campo dos valores, a quantidade sobre a qualidade, a dominação sobre a parceria, a competição sobre a cooperação, dentre outros citados pelo mesmo autor.

A exploração dos sistemas vivos em várias modalidades, desde ordem química até psicológica, torna de extrema urgência a adesão pela ecologia profunda. Em torno desse pensamento, gira o movimento popular global que reafirma conceitos diferentes dos anteriores. A ecologia profunda não separa seres humanos – ou qualquer outra coisa – do meio ambiente natural. O mundo não como uma coleção de objetos isolados, mas como uma rede de fenômenos que estão fundamentalmente interconectados e são interdependentes. A ecologia profunda definida por Capra, reconhece o valor intrínseco de todos os seres vivos e concebe os seres humanos apenas como um fio particular na teia da vida.

Portanto, pensar de forma dissociada do convencional, parece-me mais adequado aos que têm o relativo “privilégio” de estar à distância da tragédia que tem acometido tantas famílias nos últimos dias. Problematizar o que poderia ter sido feito para minimizar tantos transtornos em caso de intempéries, é o dever dos que tiveram a oportunidade de acessar, em algum momento da vida, conteúdos que permitem a compreensão das respostas dadas pelos demais elementos da natureza às escolhas humanas sobre o manejo dos recursos naturais e dos espaços urbanos e/ou habitáveis. (Referências: CAPRA, Fridjof. A teia da vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos, 1996; SANTOS, Boaventura de Souza. Um discurso sobre as ciências, 1995 | Imagem: Machacalis/MG, Dez.2021).

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