Três exemplos simples do ato de controlar alguém sob a desculpa do cuidado

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Juliana Lemes da Cruz.
Doutoranda em Política Social – UFF.
Pesquisadora GEPAF/UFVJM.
Coordenadora do Projeto MLV.
Contato: julianalemes@id.uff.br

Confundir o ato de outra pessoa de controlar nossas ações pessoais com o ato de cuidar, não deixa de ser uma espécie de autossabotagem quando nos é claro que ceder à persuasão desse outro não nos faz bem. Sabemos, no nosso íntimo, quando uma relação nos suga as energias e acontece à base da pressão por comportamentos pseudoadequados. Nesse mundo de correrias, sem espaço para reflexões pessoais, é muito comum que nossas carências afetivas escolham por nós e nos deixem em maus lençóis ao longo do relacionamento que teimamos manter. É teimosia se o alerta que vem de nós mesmos já anunciava incompatibilidade com nossos valores pessoais.

Adentro a este tema porque ele importa a mulheres e homens, apesar de alcançar, principalmente o público feminino. Concordo que suas discussões estão mais diretamente relacionadas a um campo diferente da minha formação acadêmica base (serviço social). Contudo, está muito presente tanto na minha pesquisa doutoral, quanto no meu trabalho profissional no campo da segurança pública, quando trato de formular intervenções aplicáveis às expressões da violência doméstica contra meninas e mulheres do território em que atuo como policial militar.

Por óbvio, os saberes não admitem fronteiras e a ideia engessada de que o conhecimento sobre determinado assunto está limitado a um campo específico do saber ou outro, já caiu em desuso. A interdisciplinaridade é a bola da vez. As temáticas interconectam-se e, conjuntamente, possibilitam soluções viáveis para o enfrentamento de questões caras à sociedade.

Assim, ouso pontuar três exemplos simples e bastante comuns em relacionamentos íntimos, onde o controle sobre as ações de uma pessoa sobre a outra, não raro, é confundido com o cuidado. Pelo que percebo no dia a dia e leio em referenciais da área, a constante vigilância e cerco sobre uma pessoa que se julga amar, diz mais respeito à insegurança do vigia do que de sua afeição pela pessoa “amada”. Por outro lado, a pessoa sob o olhar do tal vigia, sujeita-se àquela postura do (a) companheiro(a), sob a velha máxima de que “o ciúme é o tempero do amor”.

A naturalização de posturas que, a princípio, parecem fofas e afetuosas, pode significar a chave principal de um relacionamento abusivo consentido. Por isso, alerto para que tenha as antenas ligadas. Pontuo três frases e logo em seguida, questiono sobre elas.

1- Querida (o), onde você tá? Manda foto de agora!

Qual o nível de confiança entre as partes para que seja tolerada a exigência de comprovação por meio de uma foto? Uma das bases do relacionamento saudável não seria a confiança? Que tipo de relacionamento temos construído ao nos iludirmos que teremos sob nossas rédeas a vida de outra pessoa? Porque aceitamos que o(a) outro(a) desconfie das nossas ações?

2- Meu amor, eu confio em você. Eu não confio neles (as)! Com essa roupa você não vai!

Qual o nível de compreensão das partes sobre o que vem a ser a objetificação do corpo feminino, os padrões socialmente construídos sobre esses corpos e o quanto a adequação a essas normas priva, principalmente as mulheres, de experienciarem uma vida livre de julgamentos? O que a confiança no (a) parceiro (a) tem a ver com as escolhas que ele faz sobre seu próprio corpo?

3- Querida (o), quando sair para o trabalho, me liga e diz com quem você foi. Quando chegar no trabalho, me liga. Quando sair, me liga! Quando chegar em casa, me liga! Não é controle, é cuidado.

A vigilância de cada passo ocorreu na infância de todos nós. Foi a forma que nossos cuidadores encontraram de lidar com a nossa limitação de capacidade de discernir o que é seguro do que é perigoso. Foi uma fase de absoluto cuidado mesmo. Por outro lado, na fase adulta, isso é diferente. Espera-se que a criança e/ou adolescente tenha amadurecido e superado a fase de incapacidade de decidir o que é bom e o que não lhe convém. Pois bem, muitas pessoas ainda não superaram essa necessidade de cuidado e se permite a vigilância constante por parte de pessoas próximas e especialmente, por parceiros(as) íntimos(as). Na direção oposta, há aqueles (as) que se prestam ao papel de vigiar, como se não confiassem no valor que têm.

Elenquei essas frases comuns para dizer o quanto o ABUSO também ocorre de forma branda e supostamente carinhosa. Por isso, enfatizo que se a antena pessoal não for acionada, mais cedo ou mais tarde, o ser “amado” vê-se numa gaiola, com a porta aberta e sem vontade de voar. Acomoda- -se sob a pseudo segurança de um dado relacionamento afetivo que tende a anular suas potencialidades sem que ele (a) se dê conta disso. Sem a consciência do que ocorre e a dinâmica que têm se comportado nas suas relações, dificilmente, as partes mudam de postura. Portanto, alerta ligado e se sentir algo de estranho, fuja. (Imagem: https://pareolheobserve.blogspot.com).

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