Conto de Natal Tropical

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Marília Marx Jordan - Meteorologista pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, pós-graduação em hidrologia pela Escola Politécnica Federal de Lausanne, Suíça, onde mora atualmente.  Escritora, descendente de alemães que se estabeleceram em Teófilo Otoni e bisneta do Pastor Hollerbach, há vários anos vem se  dedicando a pesquisar a colonização estrangeira na região do Mucuri.

Ah… o Stollen… Outro dia um amigo me perguntou sobre essa tradição natalina perpetuada nas comunidades brasileiras de descendentes germânicos e sobre a maneira como a receita chegou ao Mucuri. Fui pesquisar, encontrei respostas e imaginei teorias.

O Stollen é uma a tradição muito antiga e originária da Saxônia. Sua fabricação estava ligada aos ritos pagãos do solstício de inverno. Os cristãos a recuperaram e o fizeram tão bem, que começaram a dizer que a forma do Stollen imitava um recém-nascido (Jesus) bem embrulhado numa coberta, como era o hábito de enrolar os bebês há muitos anos atrás.

A primeira referência escrita da existência do Stollen data de 1330. Num documento sobre os impostos a serem pagos por uma confraria de padeiros há uma referência sobre uma obrigação que lhes era feita de entregar não sei quantos quilos de Stollen aos senhores de certo lugar da Saxônia. 

No século XVI, o Stollen já se tornara um alimento típico da época de natal e conhecidos pelo nome de Stollen do Cristo (Christstollen) ou Stollen de Natal (Weihnachtsstollen). Eram preparados nas casas particulares, vendidos nas padarias e também nas feiras e nos mercados. Na época a receita era simples e não se assemelhava em nada ao Stollen de hoje em dia. Não tinha frutas secas ou temperos, apenas farinha, ovos, óleo e água, já que a Igreja Católica proibia o consumo de leite e manteiga durante esse período.

No fim do século XVI, dois irmãos padeiros pediram ao papa uma autorização especial para o uso da manteiga e do leite nos stollens de natal. No início, a autorização foi dada apenas para os stollens a serem consumidos pelas famílias de certos príncipes e nobres, mas pouco a pouco ela passou a ser geral. O que motivara o pedido dos irmãos padeiros não fora o gosto do óleo, que não era lá muito bom, mas seu preço, bem mais alto que o da manteiga.

O hábito de comer Stollens aumentando, os padeiros de diferentes cidades da Saxônia começaram a desenvolver outras receitas e a fazerem concorrência entre si. As brigas entre as confrarias de padeiros se degeneraram e, em 1615, alguns padeiros passaram a incendiar as padarias das cidades concorrentes. A violência aumentou e as rixas se transformaram numa batalha que ficou conhecida na história da Saxônia pelo nome de «Guerra dos Stollens». Para acalmar a situação, os governos tomaram uma série de medidas protecionistas e certas cidades proibiram que os padeiros de outros lugares viessem vender seus Stollens em suas feiras e mercados. Os infratores corriam estavam sujeitos a multas ou prisão.

Em 1721, para comemorar o fim das Guerras do Norte, o príncipe saxão Augusto o Forte, organizou uma festa grandiosa, o “Zeithainer Lustlager” (algo que pode ser traduzido como acampamento de festas ou de prazer do vilarejo de Zeithayn), e convidou várias cabeças coroadas da Europa. A festa durou um mês, houve desfile militar das tropas, apresentações de óperas, um fogo de artifício que durou cinco horas e milhões de outras coisas maravilhosas que deixaram todo mundo pasmado.

Um dos destaques principais do festival foi um Stollen gigante preparado pelo mestre padeiro de Dresden, com a ajuda de sessenta padeiros. O monstro pesava 1800 quilos, tinha cerca de 7 metros de cumprimento, 3 de largura, 30 centímetros de espessura. Foi assado num forno construído especialmente e carregado até o lugar da festa por uma carroça puxada por oito cavalos. Dizem que foi dividido em 24.000 porções que em seguida foram distribuídas aos convidados e aos soldados.

Durante este século, os padeiros e cozinheiros introduziram uma novidade na receita, as «especiarias», sobretudo a canela. A novidade agradou a “Companhia das Índias Orientais”, que possuía o monopólio dessa importação e que estimulou seu emprego no Stollen. A partir desse momento, uma grande parte do lucro da empresa passou a ser feito nessa época do ano.

Obviamente cada cidade saxã desenvolveu sua própria receita de Stollen, usando frutas secas ou cristalizadas, acrescentando especiarias diferentes, colocando recheio de massa de amêndoas ou de chocolate. Hoje em dia, cada uma delas afirma que é o berço do Stollen e que possui a receita original, mas na verdade ninguém sabe onde ele foi inventado. 

O Stollen gigante da festa do príncipe Augusto, contribuiu a reputação da receita que passou a ser conhecida fora da Saxônia. A partir do fim do século XVIII, início do XIX, o hábito dos Stollens natalinos chegou aos outros países europeus de cultura germânica. A viagem do Stollen continuou e no século XIX, sua receita partiu para o Novo Mundo nas malas dos emigrantes saxões que eram padeiros ou donas de casa da burguesia. Na época, as outras donas de casa raramente possuíam livros de receitas e caso os possuíssem faltava-lhes o dinheiro necessário para comprar os ingredientes do Stollen, um produto de luxo.

Entre os imigrantes que chegaram a Teófilo Otoni em 1856, havia um padeiro, Carl Friedrich Rausch, originário de Düben na Saxônia. Trouxera suas economias e abriu uma padaria. Não havia trigo em Filadélfia. Nem leite, nem manteiga, nem especiarias e nem frutas secas ou cristalizadas. Duvido muito que Rausch tenha conseguido fazer stollen com farinha de mandioca ou de milho. Sua padaria fazia pão de milho e de mandioca e para garantir uma melhor qualidade de vida, Rausch abriu também uma loja de tecidos. Não foi através dele que o Stollen chegou ao Mucuri.

Os outros padeiros que chegaram nessa mesma década eram prussianos e também não deve ter sido através deles que a receita do Stollen chegou. Isso só aconteceu bem mais tarde. Quando os colonos já instalados, começaram a criar vacas, a fabricar manteiga e a vender leite e manteiga, e no momento em que a farinha de trigo passou a ser vendida nos armazéns da cidade. Além disso, tudo indica que o Stollen foi introduzido por alguém que sabia fabricar passas e cidra cristalizada.

Esse alguém parece ter sido uma das filhas do Pastor Hollerbach. Não posso confirmar, mas a teoria me parece válida.

Johann Leonhard Hollerbach era um homem culto e alegre. Gostava de ler, conversar, escutar música, festejar e … comer bem. Coisas que raramente podia fazer no Mucuri. Uma vez por ano, ele viajava até o sul da Bahia, nas proximidades de Nova Viçosa, onde existia uma pequena comunidade de protestantes vivendo na Colônia Leopoldina. Esta colônia, a primeira a existir no Brasil, fora fundada em 1818 por um naturalista alemão e um grupo de suíços vindos do cantão de Neuchâtel.

Em suas cartas, o pastor Hollerbach falava de Leopoldina com imenso carinho. Suas viagens até lá eram suas férias anuais.

Os fazendeiros de Leopoldina eram ricos e amáveis com o pastor. Não precisavam de seu ombro amigo para chorar suas mágoas e reclamarem da vida dura que levavam. Hollerbach podia conversar sobre outros assuntos, falar francês, escutar música tocada por alguém que sabia tocar piano. E, melhor ainda, o piano não era desafinado! O pastor era um organista passável, mas o órgão de sua igreja estava em péssimo estado. Pior ainda que o órgão era sua voz, que conseguia ser mais desafinada que o instrumento. Além disso, uma das maiores qualidades de Leopoldina é que nessa colônia ele comia bem! Voltava de bom humor para enfrentar a vida no Mucuri.

Ora uma das pessoas de quem o pastor mais gostava em Leopoldina, era a “mamãe Krull”. Dona de uma das mais ricas fazendas do local e proprietária de um monte de escravos. O Pastor era contra o uso de escravos, mas que fazer?  Ele adorava a Mamãe Krull, que além de o paparicar, era uma cozinheira de mão cheia.

O pastor tinha quatro filhas. As duas mais velhas se casaram e a quarta, era menina demais, ainda frequentava os bancos escolares. A terceira filha, Clara, havia terminado a escola e não queria se casar. Queria ser independente e ganhar sua vida.

O Pastor a enviou para a Colônia Leopoldina, onde ela foi trabalhar na casa de Mamãe Krull e aprender a administrar uma casa e a cozinhar. Mamãe Krull ensinou a Clara tudo o que sabia e quando sua aluna voltou para o Mucuri, ela lhe ofereceu um livro de receitas impresso em Leipzig.

A Colônia Leopoldina era muito mais rica e desenvolvida que o Mucuri. Seus fundadores não haviam plantado apenas café e as culturas de subsistência habituais (feijão, mandioca e legumes básicos). Eles tinham trazido sementes europeias e plantado um verdadeiro pomar, com pessegueiros, laranjeiras, parreiras e várias outras árvores frutíferas. Mamãe Krull era a esposa de um dos primeiros colonos que haviam chegado e morava lá há muitos anos. Aprendera a viver nos trópicos, a utilizar o que tinha entre as mãos para preparar seus quitutes e a adaptar as receitas de seu país natal, a Saxônia.

Clara aprendeu uma série de receitas com Mamãe Krull, entre elas o Stollen. Mamãe Krull lhe ensinou a fazer passa de uva, cidra cristalizada e essência de amêndoas com caroço de pêssego. 

Clara voltou para Filadélfia, entregou ao pai os caroços de pêssego, de laranja e de cidra que trouxera de Leopoldina e que o pastor plantou no quintal, perto das parreiras que havia comprado ou recebido de Gazzinelli, um italiano que morava nas margens do Mucuri e havia tentado fazer vinho. Hollerbach descendia de viticultores e a região do Tauber, onde nascera, era famosa por seus vinhos exportados até na Holanda. Além disso, ele havia estudado um pouco de agronomia. Gostava de plantar e era bom, pois uma vez ele ganhou um prêmio numa feira de horticultura de Teófilo Otoni.

Clara abriu uma pensão que se tornou conhecida dos viajantes que passavam por lá a procura de madeiras e pedras preciosas. Sua pensão, que vivia cheia, era famosa, sobretudo por causa da cozinha deliciosa que ela servia. Quando as árvores começaram a dar frutos, Clara iniciou a fabricação de frutos cristalizados, passas de uva, essência de falsa-amêndoa. Começou assim a fazer stollens com a receita do livro que mamãe Krull lhe oferecera.

Todo mundo apreciando os Stollens e ela tendo trabalho demais na sua pensão, ensinou a receita para todas as primas e sobrinhas. Sendo a família numerosa, a receita se multiplicou. Ela também ensinou a receita ao cunhado de suas 3 irmãs, Augustinho Marx, o dono da padaria que levava seu nome.

Não sei se foi exatamente assim que a receita de Stollen chegou a Teófilo Otoni. Pode ter sido de outra maneira, mas a teoria de ter chegado via Colônia Leopoldina e o estágio da filha do pastor na cozinha de mamãe Krull é plausível. Sobretudo por causa da introdução das culturas de laranja, cidra e pêssego, que já existiam em Leopoldina. Uma única dúvida subsiste, sobre quem introduziu as frutas. Clara ou o pastor? Vai ver que foi o segundo que gostava de comer e de plantar.

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