Tempo das Águas

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José Carlos Freire
Professor na UFVJM

Campus de Teófilo Otoni/MG

“Céu escurece, faz o dia virar noite/e bota logo a molecada pra correr. /Recolhe a roupa do varal lá no terreiro, /pega logo, vai ligeiro, é certo que vai chover”. Assim começa a bela canção “Tempo das Águas” do violeiro e compositor Bilora. A cena segue com o que é próprio de uma chuva que chega, com pingueiras molhando a cama, trovões, raios, rezas, o vento que quebra árvores etc. No entanto, nada ofusca o elemento mais importante: a chuva é sinal de tempo novo. A natureza se manifesta, por vezes impetuosamente, mas ela é fonte de vida e a ela aprendemos a nos adaptar.

Esse arranjo entre natureza e nossa capacidade – ou não – de lidar com seus elementos se mostra com toda força no início de cada ano. Passado janeiro, fevereiro avança e, infelizmente, o filme se repete: enchentes, deslizamentos, desabrigados, pessoas desaparecidas. O tempo das chuvas vira tempo de tragédias. E lá vêm as pessoas responsáveis – de órgãos municipais, estaduais ou federais – repetir também um argumento conhecido: o problema foi o excesso de chuvas. Culpa da natureza que não consegue conter sua força…

É lastimável, para dizer o mínimo, que em plena era a tecnologia, dos avançados instrumentos de verificação e da alta capacidade de previsibilidade de acidentes, tenhamos que aceitar essa redução dos problemas a uma fatalidade climática. É evidente que o que falta é competência, planejamento, organização. Profissionais adequados(as) às funções que ocupam, com recursos apropriados e sob a orientação básica de diminuição de riscos à vida humana e ao meio ambiente.

O que se percebe, no entanto, é o contrário: amadorismo, falta de fiscalização, um jogo de loteria permanente como se nos restasse apenas torcer para que as chuvas sejam mansas a cada virada de ano. E o resultado é o mesmo, mudando apenas o local: um ano aqui, outro ano ali, pontes destruídas, barragens estouradas, crateras nas estradas, bairros alagados, encostas que deslizam, vidas perdidas.

Seria muito pretensioso pontar os únicos responsáveis por esta situação e, consequentemente, pela resolução dessa novela de mau gosto à qual assistimos todos os anos. Embora se possa e se deva cobrar de cada órgão público e de cada empresa que se relacionam com a infraestrutura do país, é inegável que o problema vem de longa data, o que aumenta nosso desafio. Não seria absurdo dizer que nos acostumamos com as tragédias e criamos uma perversa cultura na qual aquilo que é crime – seja por parte de governos ou empresas – aparece como “acidentes”.

Não vejo, infelizmente, saída a curto prazo. Abrandando as chuvas nas próximas semanas, passaremos a outras notícias e demandas. O sol logo começará a brilhar mais forte e o transcurso do ano, fatalmente, vai apagar de nossa memória o que não deveríamos esquecer. Quando chegar o mês de dezembro, como se nunca houvesse chovido no país, lá virão os noticiários retratando novas tragédias.

De maneira mais realista, diria que dois elementos são fundamentais, ainda que levem tempo para se afirmarem: o primeiro é a desnaturalização dos problemas. O fato de estar relacionado à natureza não torna um acontecimento impossível de ser evitado. Chamemos as coisas pelos nomes: pessoas que sofrem com as chuvas por morarem em áreas de risco indicam falta de política de moradia em nossas cidades; barragens rompendo significam crime ambiental e social; a maioria do que se chama acidente em razão das chuvas é, na verdade, sinal de incompetência ou cumplicidade dos órgãos responsáveis.

O segundo elemento é de ordem logística e básica: pessoas tecnicamente qualificadas ocupando os devidos lugares na gestão pública. Salvo raras exceções, passadas as eleições, o que se vê a cada formação de governo municipal, estadual ou federal é um jogo de forças no qual a composição de secretarias ou ministérios segue critérios estranhos – por vezes questionáveis. O resultado é a predominância do improviso, até que ocorra um problema ou novo “acidente”.

Ingenuidade, diriam muitos, porque se trata de algo enraizado em nosso país. Eu diria que é preciso pensar em algo diferente, mas sem ilusões, evidentemente. Por isso os dois elementos se completam: só teremos uma logística diferente se mudarmos a mentalidade. E não somos um grupo angelical no qual predomina o bom senso. Ao contrário, vivemos em uma sociedade atravessada por conflitos de interesses e contradições.

A propósito, pensar pessoas apropriadas e competentes para ocupar postos dos poderes legislativo e executivo seria um bom começo de conversa sobre eleições neste ano, certamente melhor do que a troca de cortesias que imperará nos grupos de contato nos próximos meses. De nossa parte, nós educadores continuaremos em sala de aula, buscando formar crianças, jovens e adultos não apenas para o mercado de trabalho, mas para a vida. De preferência, uma vida na qual não se aceite culpar as chuvas pelas tragédias, nem chamar de acidente aquilo que é crime.

Contato: freire.jose@hotmail.com

Ilustração: Vinícius Figueiredo

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