“Coitada, ela estragou a vida” e “as voltas que o mundo dá”: a história de superação da policial Joseli Lima

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Juliana Lemes da Cruz.
Doutoranda em Política Social – UFF.
Pesquisadora GEPAF/UFVJM.
Coordenadora do Projeto MLV.
Contato: julianalemes@id.uff.br

Não há algo mais angustiante para uma adolescente que estava cheia de sonhos e expectativas para sua vida, ouvir de pessoas conhecidas a expressão: “Coitada, ela estragou a vida”. Foi algo que eu ouvi quando engravidei aos 16 anos de idade e algo que a Joseli Lima, que engravidou aos 17, também ouviu. Hoje, passados 20 anos, compreendo o quanto as normas sociais de conduta são cruéis com as meninas e o quanto foram cruéis comigo e com a Josy. Da minha experiência de gravidez na adolescência eu posso contar em outro texto. Esta edição será dedicada a uma parte da história de superação da Josy.

A gravidez na adolescência ainda é uma realidade presente no contexto brasileiro. Apesar da aparente percepção pública de que as orientações sobre a prevenção são suficientes, meninas e meninos exploram a sexualidade de formas diferentes, onde, como, quando e com quem se sentem instigados. Geralmente, com bastante insegurança no início. A dificuldade das famílias e até de professores em tocar em um assunto tabu pode ser uma das causas que levam adolescentes a acreditarem que o conteúdo sobre sexo, sexualidade e relações decorrentes são questões externas, distante de suas realidades. Principalmente no caso dos meninos, a pornografia constitui um oráculo, onde apreendem sobre sexo casual e até “proibido”, o que os chama a atenção e vicia. Em regra, reduzem a sexualidade a um único ato. As meninas, comumente, descobrem-se de outras formas, especialmente associadas à romantização, ao pudor ou à “proibição” da busca da descoberta das zonas de prazer dos próprios corpos.

Foi no município de Poté, distante 488 quilômetros da capital mineira, interior do estado, precisamente no Vale do Mucuri que nossa protagonista nasceu, foi criada e iniciou a vida adulta. Foi naquela cidadezinha que a menina de 18 anos, de família simples, deu à luz seu primeiro filho e dois anos depois, do segundo. Ambos usufruíram de curta convivência paterna, o que tornou ainda mais difícil para a jovem, constituir uma carreira profissional sólida na fase adulta.

Apesar das projeções populares de que ela viveria o insucesso nos objetivos que almejava, Josy conseguiu com o apoio dos seus pais, ingressar no mercado de trabalho e alçar novos voos enquanto dedicava-se também à criação dos seus filhos. Como se sabe, os municípios de interior têm características próprias, geralmente, carregadas de normas que não estão no papel, mas, sim, nos costumes, na tradição. Tanto Poté, quanto municípios circunvizinhos não apresentam contextos diferentes. São bastante “provincianos”. Dá para imaginar o que é ser uma mulher jovem, bonita, inteligente e mãe- -solo morando em uma cidade “provinciana”? Em lugares assim, mulheres bonitas e jovens têm seu “lugar”: acompanhadas de um homem de status. E as mulheres com filhos? No mínimo, espera-se que estejam ao lado de um homem. Jamais, sozinhas.

Joseli não ocupou esses lugares. Enquanto trabalhava no setor de Assistência Social da prefeitura de Poté, conseguiu estudar e ser aprovada em dois concursos públicos. Não satisfeita, prestou vestibular para a recém-criada Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, com sede em Teófilo Otoni, sendo a 10ª colocada para ingresso na 1ª turma de Serviço Social, no ano de 2006. Insistiu nos estudos, e acabou sendo aprovada, no ano de 2007, no concurso da Polícia Militar de Minas Gerais, que teve curso de formação em Governador Valadares. Decidida, trancou sua matrícula no 3º período do curso que iniciou na UFVJM e partiu para iniciar a carreira que se dedica até hoje.

Desde adolescente, por onde passava, Joseli chamava atenção pela beleza natural que se assemelhava à de uma indígena. De cabelos longos, que passavam da linha da cintura, olhos escuros, rosto com traços firmes e corpo esbelto. No lugar de ser positivo, ter um perfil estético que se encaixa nas preferências masculinas pode ser bastante desconfortável em ambientes de sociabilidade conservadores. Neles, a mulher precisa ocupar apenas os espaços predeterminados a ela. Condição defendida, inclusive, por algumas mulheres que abraçam os papéis socialmente construídos como se nunca pudessem ser alterados.

Nesses cenários, uma mulher que ocupa a função de policial, historicamente associada à figura masculina, é uma mulher ousada. Algumas crenças limitantes, como desassociar mulheres da condição de boas atiradoras e motoristas, corajosas ou assertivas, ainda impera no imaginário popular, como se estas fossem características essencialmente masculinas. Tais crenças caem por terra à medida que mais mulheres ingressam nas forças de segurança pública do país. Aos poucos, pelo avanço da ideia de que para um pleno desenvolvimento faz-se necessário a redução, também, das desigualdades de gênero, como em alguns estados do Brasil, o limitado percentual destinado ao ingresso feminino nas corporações será diluído e mais mulheres integrarão a segurança pública.

Destaco esta condição para dizer o quanto as pressões sociais empurram pessoas que não admitem serem colocadas em “caixas” menores que seu real tamanho. Joseli sentia-se assim quando decidiu sair de Teófilo Otoni para viver na capital mineira. Antes disso, serviu por alguns anos em GV, de onde decidiu sair para trabalhar mais próximo da casa dos seus pais, com quem suas crianças estavam vivendo. Em poucos meses, tratou de levar seus filhos para Teófilo Otoni, onde os criou sozinha. Nesse período, conseguiu comprar seu primeiro veículo, mas ainda vivia em casa de aluguel.

Encurralada, meninos entrando na pré-adolescência, e junto, os sintomas de hiperatividade e reatividade frente às ausências familiares, o que se refletiu no nível de aproveitamento escolar. Os filhos davam um baita trabalho a ela. Sozinha, suportando firme pressão de toda natureza, deixou a cidade onde foi mais um exemplo de mulher em situação de violência doméstica. No seu caso, por parte de um ex-companheiro.

Ainda assim, foi julgada socialmente, como alguém que teria dado causa às agressões. Situação difícil, que, particularmente, pude acompanhar o decorrer e o desfecho. Como se diz: “não é possível se curar no mesmo ambiente em que adoeceu”. Assim, Joseli tomou a mais acertada de suas decisões. Deixou para trás um percurso de desafios, recorreu novamente aos seus pais para ficar com seus filhos por um tempo, e com medo, mudou-se para Belo Horizonte. Adaptou-se ao ritmo de trabalho do lugar, identificou como poderia viver bem ali, se privou de muitas coisas, se planejou e após dois anos, conseguiu financiar um apartamento, onde vive atualmente com seus filhos Kaio e Arthur, com seu companheiro, o Tales (o Gari Gato), além do cãozinho Eddye.

Finalmente, passados mais de 20 anos desde que aquela menina escutou “Coitada, ela estragou a vida”, ao invés de se diminuir e aceitar o que lhe disseram, persistiu e com o apoio de cuidados dos seus pais, enfrentou dificuldades e avançou, ao ponto de ter tido a alegria de escutar expressões muito diferentes, que destacam “as voltas que o mundo dá”. No início do próximo ano, Josy deverá ingressar no curso de sargentos da PMMG, onde já passa dos 15 anos de prestação de serviços.

A história da Josy sintetiza episódios em que precisou lidar com frustrações, aflições, saudade, sentimento de culpa, insegurança, impotência e medo. Elementos que a desafiaram a se permitir arriscar viver sem a preocupação de caber em “caixinhas” e sem perder a esperança que conseguiria alcançar seus objetivos de vida mesmo diante do desafio de ter sido na adolescência, mãe, e mãe-solo.

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