Da cabo (1993) à tenente (2022): o percurso de Ilmara Lopes como mulher policial militar

0
294
Juliana Lemes da Cruz.
Doutoranda em Política Social – UFF.
Pesquisadora GEPAF/UFVJM.
Coordenadora do Projeto MLV.
Contato: julianalemes@id.uff.br

De longe, a história da Tenente Ilmara, que já pendurou o sapato branco, foi a que mais demorei para organizar em um texto. Seu relato diz sobre sua experiência frente à nobre missão de desbravar espaços de trabalho viáveis às mulheres policiais que chegariam depois dela, em uma das estruturas estatais mais masculinizadas que se tem notícia na sociedade contemporânea: a Polícia Militar. Em razão disso, este texto representa apenas a primeira parte de uma longa e desafiante história.

No caso da PM de Minas Gerais, o ingresso da mulher ocorreu no ano de 1981, após duzentos anos de corporação 100% masculina. Nessa atmosfera de transição, já em 1993, Ilmara Lopes ingressou nas fileiras da PMMG. Do Núcleo de Saúde onde atuou durante as últimas três décadas de serviço ativo na sua cidade natal, Teófilo Otoni – Minas Gerais, foi a única profissional da enfermagem a realizar todas as transferências via aérea, acompanhando militares.

Na minha visão de mulher que ingressou na mesma instituição quase 20 anos depois, sua história foi impactante. Por isso, no texto que ilustrará a segunda parte desse percurso, ao passo que descreverei o relato da militar, cumprirei o importante dever de informar ao leitor que muitas das situações vivenciadas pela policial à época, já não são admissíveis nas instituições brasileiras, embora tenham sido naturalizadas naquele momento histórico. Constituirá, sem dúvidas, somado a este, um importante registro histórico para o campo da segurança pública.

O rico depoimento submete-se aos contornos histórico e sociocultural de um município do interior de Minas, bem como, à resposta institucional à presença feminina nos quartéis, em plena década de 90. De fato, uma mulher policial era uma grande novidade e não existiam normas e condições laborais inclusivas para ela naquele universo tão masculino.

No campo histórico-político nacional, destacava-se o momento de redemocratização do país, quando ocorreram mudanças muito importantes em decorrência da promulgação da CF de 1988. As reivindicações contidas na Carta das Mulheres aos constituintes foi um dos marcos no sentido da garantia da dignidade das brasileiras, que sofriam, em todos os espaços da vida social, discriminações e violências pela condição de ser mulher, como se a subserviência fosse um destino natural delas.

Ao chegar ao município, recém-formada no curso de 1993, a cabo Ilmara se tornou a atração, além de ser, até então (2023), a 1ª e única policial feminino, natural de Teófilo Otoni, a servir no município por 30 anos. Mesmo sendo do quadro da saúde, Ilmara, ocasionalmente, trabalhava nas ruas. Não raro, era confundida com uma profissional da marinha, por trajar farda branca.

No ambiente de caserna, Ilmara notou que os colegas utilizavam um linguajar sem trato frente a uma mulher. Na época, a alimentação se fazia no próprio batalhão, em um espaço chamado de “rancho”. Os ranchos eram separados: 1) rancho dos cabos e soldados; 2) rancho dos sargentos e subtenentes; e 3) rancho dos oficiais. Durante as refeições, a cabo Ilmara sentia que sua presença incomodava os colegas e atrapalhava o momento de “lazer” deles. Lá, costumavam tecer os comentários “proibidões” e fazer brincadeiras.

A irreverência, assertividade e habilidade para se posicionar eram características facilmente identificáveis na policial Ilmara. Um homem não costumava ousar “gracejos”, porque ela inverteria o jogo antes. Sempre foi um marcante personagem do 19º Batalhão. De personalidade, conquistou dos policiais masculinos o respeito, e das policiais, a admiração. Por meio do seu relato, percebi as possíveis razões pelas quais ela se moldou tão expansivamente. A meu ver, usou a postura permanentemente no “modo ataque” como estratégia de defesa em um espaço que ainda não cabia à mulher com todas suas particularidades.

Felizmente, tive a satisfação de testemunhar a sua autenticidade enquanto ainda estava na ativa da PMMG. Com ou sem farda, sempre foi o reflexo de alto astral, alegria e comprometimento com seu próximo. Seu nível de acolhimento com os colegas era tamanho que se sentiam, de certo, como se “debaixo de grandes asas protetoras”. Um alento em um ambiente, não raro, tão hostil.

Ilmara, que também é graduada em Serviço Social, sabia bem que a função policial militar nas ruas é de mediação ou resolução de conflitos individuais e/ou coletivos em todas as escalas, desde os mais simples aos complexos. Por esta razão, sempre teve a noção de que tal condição projetava sobre os policiais toda sorte de negatividade humana, o que poderia se transformar em médio ou longo prazos, adoecimento mental e físico. Sua sensibilidade ao tratar profissionais aparentemente insensíveis, cativava tanto os policiais acolhidos como seus familiares.

Antes de mais nada, prestar esta singela homenagem à Ilmara mulher e profissional, significa dizer a outras mulheres policiais que é possível desbravar espaços no sentido da garantia do lugar feminino, necessário e de direito. E para, além disso, é possível fazê-lo sem deixar de lado sua essência. Isso porque, Ilmara não foi uma policial da ativa convencional. Ela sempre foi diferente. Suas atitudes eram consideradas ousadas para o campo profissional em que eram reproduzidas, mas, no limite da legalidade, hierarquia e disciplina, elementos basilares da corporação.

Nesse universo, embora legitimada por seus pares (colegas de profissão) e muito admirada por eles, “prego que se destaca, toma martelada”. Ainda mais quando se é um prego jovem e destacado em um momento pós-regime militar, onde as mulheres eram apenas as recém inseridas como sujeitos de direitos no texto constitucional. À época, o que chamamos de “Sistema”, protagonizou as marteladas na tentativa de retirar o destaque de determinados pregos, rebaixando-os à régua que nivelava os demais.

Ousados e em respeito à própria natureza, alguns pregos não admitiam o nivelamento rasteiro, e acabavam por serem machucados. A seu modo, Ilmara foi um “prego em destaque”, em permanente destaque eu diria. Daqueles que além de se destacarem pela altivez profissional, brilhavam em virtude de sua essência. Em razão disso, Ilmara coleciona episódios difíceis que marcaram seu percurso, os quais, serão alvo nesta coluna na segunda parte desta história. Para ilustrar, como subtítulos: 1) a graduada e um subordinado; 2) a gestante prisioneira; 3) a sargento que quase não foi; 4) o crescimento das asas podadas.

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui