A fatalidade que interrompeu um sonho: Gabriel em vida pela medicina

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Juliana Lemes da Cruz.
Doutora em Política Social (UFF).
Conselheira do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Contato: julianalemes@id.uff.br | @julianalemesoficial

A história de Gabriel constitui uma representação das percepções de seu pai, Judson. Pessoa que, com orgulho, manifestou seu interesse em ilustrar nesta coluna, o quanto seu filho foi valente na busca de seu sonho, o quanto foi importante e o quanto deixou saudade. Nas próximas linhas, coloco-me na condição de instrumento do amor desse pai, que em acordo com sua esposa, decidiram expor esta ferida ainda tão aberta, deixada há pouco mais de um ano em suas vidas.

Gabriel de Oliveira Faria que veio ao mundo no dia 24 de fevereiro de 1999, o deixou tragicamente na noite do dia 06 de outubro de 2021. Ele estava acompanhado de Letícia, a quem chamava de grande amor de sua vida. Aquele fatídico dia marcaria para sempre suas famílias. Mas, jamais ao ponto de ser capaz de apagar as boas memórias que têm dos jovens, Gabriel e Letícia. Por isso, esta homenagem póstuma, de iniciativa de Judson, em comum acordo com os pais de Letícia, manifestado por sua mãe, a senhora Ana Paula. Postura que, sem dúvida, demonstra a força espiritual desses pais diante de uma perda ainda tão recente para suas famílias.

O pai do Gabriel atua como sargento da Polícia Militar. Mesmo após ter completado o tempo para se aposentar, decidiu permanecer na ativa, uma vez que sua permanência ajudaria a custear os estudos do filho. Judson e Giovana, pais do jovem, decidiram que fariam o possível e o impossível para que o rapaz pudesse estudar. Estavam comovidos com tamanho esforço do filho na busca do sonho de ingressar no curso de medicina. Apesar do desfecho da história que me coloco a narrar, é perceptível que Judson segue com sua dor, mas altivo, bem-humorado, prestativo e atencioso à missão atualmente conferida a ele: o cuidado com a comunidade escolar de Teófilo Otoni, MG. Testemunho quase diariamente sua dedicação com aquela missão. Enfim, sigamos sobre o caso.

Gabriel foi criado no bairro Concórdia, zona norte da cidade, juntamente com sua irmã, 4 anos mais velha. Foi lá que, ainda criança, o rapaz aprendeu o valor da amizade verdadeira e consolidou os valores que já carregava de berço. Matheus Murta foi o companheiro de brincadeiras do garoto carismático e bem-humorado que estudou na escola municipal Irmã Maria Amália. Naquele espaço, Gabriel conheceu seus novos amigos, nomes que seu pai lembra com alegria enquanto fala sobre sua história.

Os gêmeos Matheus e Maruan, Thiago Klier, Henrique e João Gabriel foram lembrados com carinho por Judson, que acompanhou a molecada nos seus estudos até precisarem mudar de escola, em razão da mudança de nível para o ensino médio. Gabriel ingressou no Colégio Tiradentes da Polícia Militar onde fez novas amizades e uma, em especial, decisiva. O rapaz estreitou contato com Gabriel Horta, o grande influenciador do seu xará na escolha que, segundo Judson, mudaria os rumos da sua vida: a decisão de estudar medicina.

Obviamente, não seria fácil. E para Gabriel, que, apesar de ter sido criado em um lar onde contou com pais com estabilidade no emprego e garantias básicas para que pudesse estudar com tranquilidade, não era de família de posses ou com condições econômicas excepcionais para se qualificar a ponto de ser um candidato altamente preparado para o ingresso no curso pretendido. Para conquistar seu sonho, Gabriel precisaria estudar mais do que outros jovens que já tinham esse objetivo como destino natural. Para o rapaz, a medicina seria o rompimento de uma bolha que o apresentaria novos mundos. Seus pais tinham noção disso e o apoiavam a alçar voos mais altos. A luta de Gabriel começaria com aquela decisão, o que o levaria a muitas outras, dentre as quais, a mudança de escola.

O jovem cursou o segundo e terceiro ano do ensino médio na escola estadual Alfredo Sá e logo começou a trabalhar como jovem aprendiz na farmácia do trabalhador onde ficou por sete meses. Tempo suficiente para ele se tornar um atendente de balcão. No entanto, aquela rotina não favorecia o alcance do seu sonho, que era grande demais para não se dedicar por inteiro aos estudos. Gabriel pediu ao pai que o ajudasse, pois precisaria ficar por conta dos estudos. Foi o mesmo período em que, segundo Judson, ele conheceu uma linda garota por nome Leticia, que era um amor de pessoa, estudava medicina veterinária, era apaixonada por animais, filha de Geraldo e Ana Paula […]”. Apaixonados, o namoro se iniciou. Leticia apoiava Gabriel com os estudos, que decidiu se qualificar fazendo cursinho no Genoma.

Por lá, “[…] conheceu também pessoas que o ajudaram a se concentrar e se dedicar ainda mais com os estudos, como: Caio, Sofia, Rafaela, Beatriz, Danilo, Henrique e Rafael Horta. Formaram um grande grupo de estudos e para os ajudar a passar por aqueles momentos de estresse, criaram um grupo chamado de “oração”, onde se reuniam para cantar louvores e fazer orações. Cada Enem era uma história, Gabriel sempre se alegrava ao ver seus amigos conseguindo vagas em universidades, mesmo quando não conseguia nota suficiente”, completou Judson.

O sonho de Gabriel parecia estar próximo de sua realização. Quando passou pela primeira vez, teria ficado muito emocionado. No entanto, as condições financeiras de sua família não o oportunizava a realização do sonhado curso naquele momento. Por isso, continuou estudando e se dedicando ainda mais, com o apoio da família e da sua amada Leticia. Gabriel fez tentativas em quase uma dezena de universidades em um espaço de dois anos. Ele realizava as provas anuais do ENEM para se qualificar a uma vaga em um curso de medicina, seu grande objetivo. Por isso, foi possível o levantamento de registros de suas candidaturas desde o ano de 2020 em pelo menos 6 (seis) instituições diferentes.

Gabriel estava na posição 31 da lista de espera de candidatos por cota – do curso de medicina da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), publicada sobre o 2º/2021. Posição 20 na lista de espera do curso de medicina da UFRB 1º/2021, e posição 86 na UNIFENAS. No Centro Universitário Redentor, em Itaperuna/ ES, Gabriel conseguiu bolsa de 50%, em 2020, mas, como não teria condições de custear, sequer, tal valor, desistiu da tentativa. Em 2020 também tentou medicina na Universidade Federal Fronteira do Sul (UFFS). Por derradeiro, a Univértix, em Matipó/MG.

A fatalidade – Na noite de quarta-feira, 06 de outubro de 2021 aconteceria o fato que impediria Gabriel e Letícia de tomarem conhecimento do resultado das notas do rapaz que sairiam na semana seguinte. Enquanto o casal aguardava, dentro do carro, um amigo que os acompanharia ao aniversário de Tiago Klier – amigo de infância –, Gabriel e Letícia foram alvejados com vários disparos de arma de fogo. O autor do crime teria confundido o jovem com outra pessoa, o que teria motivado a investida contra o veículo parado, vitimando seus dois ocupantes. O alvo seria um homem parecido com Gabriel. Como estava ao seu lado, Letícia foi atingida fatalmente no rosto. Judson relatou que o fato deu grande repercussão, que Gabriel nunca teve envolvimento com a criminalidade e que após três dias do fato, o possível autor foi encontrado morto em uma região afastada da cidade.

Sobre isso, desabafou: “te confesso que eu não tenho nem força para saber de nada disso. Nós, eu e minha esposa e a família da Letícia, vivemos assim… sem saber o que fazer. A gente procura viver um dia após o outro. A cada dia matando um gigante, porque a gente não tem forças…Te confesso: tem hora que a gente está bem, tem hora que parece que falta o chão para gente. Há momentos que a gente fica assim, sem saber até como lidar com isso e a gente tem pegado muito é com Deus pra continuar levando. Uma fatalidade como essa, a gente não tem estrutura para assimilar as coisas […] então, a única coisa que a gente espera é que essa violência acabe. Que as pessoas procurem viver o bem. Porque eu vou falar com você, moça: o mundo tem se tornado muito cruel. O ser humano tem se tornado muito cruel”. Finalizou afirmando que o que o deixa de pé são os momentos que ele consegue homenagear seu filho e Letícia. Motivo pelo qual se prontificou a contar esta história a partir do seu olhar de pai.

Por sinal, um generoso olhar de pai, que, ao contrário do que pensa, demonstra uma força fora do comum, assim como os demais familiares dos jovens vitimados naquela fatalidade. São exemplos de fé na vida e, provavelmente, crentes de que onde quer que estejam o Gabriel e a Letícia, certamente, iriam gostar de vê-los bem, em paz e seguindo suas vidas com esperança de dias melhores, apegados às boas lembranças que ambos deixaram. Entenda o caso: https://diariotribuna.com.br/?p=12351 https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2021/10/07/interna_gerais,1312083/universitaria-e-namorado-sao-executados-dentro-do-carro-em-crime-misterioso.shtml

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