“Eu estava lá!” Dra. Aline Gomes, Juíza de Direito, relata sua experiência de assistir à votação no CNJ sobre paridade de gênero no Judiciário

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Dra Aline Gomes, Juíza de Direito

Eu estava lá! No dia 26 de setembro deste ano, o Conselho Nacional de Justiça aprovou, por maioria dos votos, a criação de política de alternância de gênero no preenchimento de vagas para a segunda instância do Judiciário. Com a decisão, os Tribunais de Justiça deverão utilizar a lista exclusiva de mulheres, alternadamente, com a lista mista tradicional, nas promoções pelo critério do merecimento.

Não é de hoje que se questiona os motivos pelos quais as mulheres são maioria das pessoas no Brasil, mas, ainda assim, constituem parcela insignificativa nos espaços de poder. E quais seriam as razões? Há motivações históricas que fundamentam essas divisões sexistas na formatação do trabalho, na ocupação dos espaços de poder e tomadas de decisão.

Uma das características marcantes da divisão sexual do trabalho é a atribuição prioritária dos homens às atividades produtivas, enquanto as mulheres são predominantemente associadas às responsabilidades reprodutivas. Simultaneamente, os homens frequentemente ocupam funções que são socialmente valorizadas, como as áreas políticas, religiosas e militares, entre outras. Essa estrutura de divisão do trabalho na sociedade se baseia em dois princípios organizadores: o princípio de segregação, que implica a existência de tarefas específicas para homens e mulheres, e o princípio de hierarquização, que estabelece que o trabalho realizado pelos homens é frequentemente considerado mais valorizado em comparação ao trabalho desempenhado pelas mulheres.

Pode-se questionar se o princípio da separação de tarefas entre homens e mulheres seria uma escolha individual em que os “lugares das mulheres” seriam decorrentes de uma lógica natural da existência. Mas não é sobre isso que se quer falar aqui. Na realidade, o que se busca é a aceitação de que as desigualdades atuais são fruto da sociedade do patriarcado em que se desvaloriza as funções domésticas realizadas pelas mulheres e, quando realizadas por homens, são exaltadas.

Em minha prática diária no trabalho da Vara da Infância e Juventude, vejo que muitas são as famílias chefiadas unicamente por mulheres que necessitam se desdobrar entre as lides de casa, dos filhos e do trabalho, para viver com o mínimo. São muitas, mas muitas mulheres que, após separação conjugal, passam a cuidar sozinhas dos seus filhos, sem rede de apoio, e contando com baixas contribuições dos pais dos seus filhos com pensão alimentícia, quando pagam. O resultado disso? Famílias desestruturadas porque as mulheres necessitam trabalhar o triplo para manter a casa e os filhos (que são muitos) e sem o apoio dos ex-companheiros. E onde estão eles? Em maioria, passaram a conviver com novas companheiras e a vida seguiu. Há exceção, mas essa é a regra, infelizmente. Além disso, é apenas um recorte demonstrativo de que, embora sejamos muitas, ainda somos poucas.

Mas também há os arranjos familiares em que os homens saem para o trabalho externo e as mulheres optar por trabalhar nas lides domésticas e cuidados com os filhos. Nenhum problema quanto a essa opção. O problema surge quando essa função doméstica é desvalorizada e passa a diminuir o valor, a voz e a participação feminina na sociedade. Por que essa narrativa para falar sobre a paridade de gênero no Judiciário? Bom, segundo valorosas pesquisas que embasaram o voto da Conselheira Salise Sanchotene, 60% dos juízes do Brasil são homens e 40% são mulheres. Na 2ª instância a desigualdade aumenta: 77% dos desembargadores são homens, enquanto 23% são mulheres.

Daniel Sarmento, professor de Direito Constitucional da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), concluiu em seu parecer que fundamentou o voto da Conselheira Salise que “a falta de equidade de gênero na composição dos tribunais, além de evidenciar a discriminação direta ou indireta das juízas, compromete a própria legitimidade democrática das cortes, bem como a sua capacidade de cumprir de modo adequado a sua missão institucional maior, de proteger os direitos fundamentais de todas as pessoas”.

Ou seja, é possível extrair que as desigualdades femininas atingem todos os patamares da sociedade, e um retrato disso é a crescente prática de crimes bárbaros e violentos tendo as mulheres como vítimas. Costumo dizer que a violência doméstica perpassa por “crimes democráticos”, em que todos participam igualmente, ou seja, é praticado por pessoas de todos os estratos sociais e de todos os níveis culturais e educacionais, principalmente porque toda essa cultura ainda tem suas raízes no patriarcado.

Os três filhos da Dra Aline aos cuidados do pai enquanto ela viajava

Enfim, eu estava lá! No exato dia da sessão em que se definiu pela ação afirmativa que visa desconstruir a histórica desigualdade no 2º Grau do Judiciário brasileiro, posso afirmar que a emoção falou mais alto. No Plenário, éramos muitas juízas, de vários lugares do país, com trajetórias distintas, muitas com filhos, inclusive com eles lá durante a sessão (os meus estavam em casa, sendo cuidados por meu esposo!). Porque somos assim, diversas, mas comprometidas com a toga. Comprometidas com a sociedade igualitária, na forma da Constituição Federal.

Ainda há muito campo para desbravar e muitas barreiras para romper. Eu, mulher, Juíza de Direito, esposa e mãe de 3 meninos, estou fazendo a minha parte. E você, começou a fazer a sua?

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