Os ciclos se fecham

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José Carlos Freire
Professor na UFVJM, Campus de Teófilo Otoni/MG

Sigo o caminho para escola. Mais uma entre as incontáveis ocasiões de buscar as crias. Dessa vez, porém, é diferente: não apenas o último dia de aula do ano, mas o último dia nesta escola. Mudanças da vida, ajustes que todas as famílias fazem. Está tudo certo, já que mudar de escola é algo comum.

É inegável, porém, o efeito do momento. Talvez por meu traço nostálgico. Reparo a rua da nossa casa, as esquinas, o trajeto todo. Tento gravar cada cena com aquela sensação de quem sempre viu algo, mas nunca reparou bem. É que em dias comuns não pensamos assim; apenas seguimos a vida. Só damos atenção maior para algo corriqueiro quando uma circunstância nos leva a isso. Neste caso, uma despedida.

Chego à escola. Quantas vezes esta cena se repetiu? Júlia pega a mochila, chama por Lucas, vêm até o carro, entram e eu pergunto como foi a aula, não sem um nó na garganta. Ela sorri, ele sacode os ombros. Não há muito o que dizer. Entendemos. Vamos para a casa.

É curiosa a vida. São quase dez anos de um ciclo; agora um novo começará. Em pouco tempo, essa carga emotiva que agora é grande será apenas uma doce lembrança, como hoje acontece em relação aos dias que antecederam sua entrada na vida escolar.

Em todo esse tempo, porém, eu não pensava nisso. E por quê? Acho que a ideia de calendário ajuda. Quando os povos antigos criaram, cada qual ao seu modo, modelos de contagem de meses e anos, a referência sempre foram os números inteiros. Não falavam de 2,4 anos ou 38% de um mês. Falavam de 11 meses, 354 dias, 5 anos etc. Esse dado, por certo, contribuiu para o hábito de se perceber, por exemplo, o final de um dia quando este termina; o final do mês quando faltam poucos dias para o próximo; o final do ano quando o último mês vai se encerrando.

Por isso o fim de um ciclo, por mais consciência que se tenha dele durante seu decurso, somente se torna relevante quando se concretiza. Assim é, sobretudo, o final do ano. Mal se entra em dezembro e parece que as ruas se agitam, as pessoas andam mais depressa, parecem estar todas com pouco tempo para tanta coisa a ser finalizada. Até mesmo o relógio parece mais acelerado.

É então que, naturalmente, entramos em “modo balanço”. E começamos a avaliar o que foi e o que não foi feito, a reforma não realizada, a atividade física não levada a sério, amizades que ficaram sem contato e por aí vai. A ênfase, quase sempre, recai sobre o que não conseguimos.

Há uma atenção maior em cada coisa. Pessoas praticamente esquecidas vêm à mente. Compromissos importantes voltam à cena. Há quem, inclusive, retome as anotações feitas no dezembro passado sobre as metas para o ano que agora se encerra. Tudo isso é natural e saudável. Balanço feito, é preciso serenidade para reconhecer os limites do que não foi possível e muita leveza para projetar o ano seguinte. De preferência, sem idealizações, sem fantasias.

É aí que está a armadilha. Enredados no clima de fim de ano e maravilhados pela lógica das compras – à qual nunca conseguimos atender, mas cedemos – costumamos dobrar a aposta para o ano seguinte. Então, projetamos tudo o que não conseguimos neste que se encerra e mais um tanto do próximo.

Não. Não dará certo. O próximo ano não será a realização de tudo o que não foi possível neste; não será o ano da minha “virada na vida”; não emagrecerei tudo aquilo que espero; não aprenderei a tocar brilhantemente aquele instrumento; não lerei os dez livros e nem assistirei aos vinte filmes que ficaram pendentes. Sinto muito, mas será apenas mais um ano. Comum e básico, como os demais.

Além disso, pensemos com os dois pés no chão: será um ano difícil, muito difícil. Não há no horizonte próximo nenhum sinal milagroso de solução dos problemas sociais brasileiros; o salário não subirá quase nada e os preços continuarão a subir demais; os problemas ambientais e climáticos simplesmente serão piores; a qualidade dos alimentos e da saúde pública em geral vai decair. E, se não bastasse tudo que é da ordem social, ainda há a dimensão pessoal que cada qual de nós sabe o quanto de desafios reserva para o ano seguinte. A começar de um dado simples: estarei mais velho.

“Mas pensar assim é desanimador!”, você dirá. Por favor, não me condene. Quem impõe isso não sou eu, mas a vida. O que me parece mais sensato seria tomar as coisas do seguinte modo: posto que o quadro geral é esse, o que é possível fazer? Aí está, penso, o princípio de um planejamento honesto para o ano seguinte.

Eu, você e todo mundo fará no próximo ano somente o que for possível, na medida das condições e de acordo com nosso empenho. Elas, as condições, não dependem só de nós e é preciso aceitar isso. Lutar, batalhar ao máximo, mas sem ilusões. E ele, o nosso empenho, este sim está no nosso controle. No entanto, sem super-heroísmo, por favor.

O mundo será, um ano mais, palco de atrocidades e ignorância; o sistema operacional geral – a lógica mercantil e de concorrência – será ainda mais perverso. É evidente, porém, que sempre há brechas, pequenos espaços de manobra, pequenas possibilidades. A elas nos agarremos com toda a força! Em todos os campos da vida social, como costuma dizer um velho amigo, pelo menos 2 % de profissionais farão seu trabalho com competência e senso ético. Façamos parte desse pequeno grupo com toda convicção!

No mais, rememos a canoa, com determinação, paciência e serenidade. Nada de mágico acontecerá na virada do ano. Será apenas mais um marco no calendário. Mas, cada qual de nós – assim espero – terá mais um trecho de vida. E isso, acaso, não é muito?

Que seja bom o próximo ciclo, o quanto for possível. 

Contato: freire.jose@hotmail.com
Ilustração: Vinícius Figueiredo

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