Uma cachaça com Elomar

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José Carlos Freire
Professor na UFVJM, Campus de Teófilo Otoni/MG

No início de fevereiro passado faleceu Vital Farias, cantor e compositor de grande importância na música nordestina e do Brasil. Para nós que fomos jovens nos anos 90 e gostávamos de música popular brasileira, este nome ficou imortalizado, já que ouvir o disco “Cantoria” era um dever e um prazer. Gravado em 1984 no Teatro Castro Alves, de Salvador, com uma segunda edição em 1988, o encontro reuniu Elomar, Geraldo Azevedo, Vital Farias e Xangai.

A erudição de Elomar se juntava ao traço popular de Xangai e Geraldo Azevedo. Vital Farias era o ponto de mediação, com um violão primoroso e uma poesia de arrepiar. Um canto forte, para lembrar o Dércio Marques, que bem poderia ter sido o quinto membro dessa roda de gênios.

Figura engajada nos debates sociais e ambientais, tendo sido inclusive candidato a cargos públicos por diversas vezes, Vital, fora dos palcos, oscilou de posições à esquerda no início da carreira para discursos à direita nos últimos anos. Por isso foi inevitável que diversos meios de comunicação que noticiaram a morte do artista fizessem questão de pontuar sua mudança ideológica. Em alguns casos, dando mais ênfase a isto do que à obra do compositor, o que me deu certa melancolia. Lembrei-me, então, de quando, por puro acaso, conheci pessoalmente Elomar Figueira de Mello, espécie de patriarca do grupo de “Cantoria”.

Era início de 2002 e eu participava de um projeto de educação de jovens e adultos de inspiração em Paulo Freire. O que me levou a um Encontro de Formação em Vitória da Conquista, na Bahia. A organização do encontro me proporcionou a hospedagem solidária com uma família acolhedora. Na primeira noite comentei que gostava muito de um compositor daquela cidade e coisa e tal. Até que minha anfitriã me interrompeu e disse com os olhos brilhando: “O Elomar!? É meu vizinho! Amanhã te levo lá”. O inusitado acontecia.

E lá fomos, ela à vontade, eu sem jeito. Adentramos numa grande sala cheia de instrumentos musicais, quadros e discos. Elomar nos recebeu e nos apresentou a uma pesquisadora do Rio de Janeiro que, naquela tarde, visitava-o. Discorriam sobre óperas, árias, o Flamenco e a influência da música ibérica no Brasil. A certa altura ele se entediou e disse: “Vamos tomar uma cachaça!”.

Botou todo mundo no carro e nos levou a uma pequena venda. Na prateleira, dezenas de tipos diferentes de cachaça; pura, com casca de imburana, com raspas de coco, com ervas medicinais. Tomei um pequeno gole para acompanhar, mas o que eu queria mesmo era continuar a ouvir Elomar que não parou de falar um minuto, sempre a respeito de sua obra.

De repente, fez uma breve pausa e confessou, num misto de lamento e raiva, que era comum se associarem suas letras, no dizer dele, “ao PT”, partido que, desde a redemocratização, representava as propostas de esquerda na política institucional. “Não tem nada disso!”, esbravejou. “Eu canto as coisas do sertão e da vida de quem vive ali. Não tô interessado em política!”. Levantou-se, pagou a conta e saiu. Sua paciência para conversa tinha acabado.

Aquilo ficou ressoando em mim até o outro dia quando, igualmente por acaso, fui parar em um grupo de trabalho do Encontro no qual havia uma professora muito sensata e grande conhecedora dos desafios da educação popular. Quando alguém notou seu sobrenome e a perguntou se era parente de Elomar, ela confirmou com um sorriso sereno.

Aquela mulher de longas lutas sociais e nítido engajamento político, percebendo que o fato interessava a todos, disse algo que não mais esqueci e me serviu de guia desde então: “O Elomar tem posições políticas muito conservadoras das quais eu discordo totalmente. Mas sua obra é maravilhosa e merece toda a admiração e reconhecimento!”.

Naquele momento entendi, antes de ler qualquer coisa sobre filosofia da arte, um pouco sobre o histórico debate a respeito da distinção entre a obra e a posição ideológica do artista. E que, nessa querela toda, quando se fala de arte, importa pouco o que o artista pensa ou fala fora do seu ofício: importa o que ele cria.

Esta lembrança me aquietou naquela manhã em que soube da morte de Vital Farias. E pude dizer a mim mesmo que eu sentia muito essa perda. Porque ele foi – e continuará sendo – importante na minha jornada. Não serão as postagens de redes sociais, as falas de entrevista, as opiniões controversas de Vital Farias que guardarei: eu o tenho como autor de músicas que estão incrustadas na minha biografia.

A obra de arte é boa não porque fala de bandeiras políticas das quais gostamos – ao contrário, quando ela se submete a uma bandeira, qualquer que seja, costuma se apequenar. Ela é boa quando, bem-feita e sem ser panfletária, provoca algo em nós, aguça nossos sentidos, tirando-nos do automatismo do cotidiano. A propósito, até onde sei, o último Vital Farias, exceto por algumas falas em shows, não reduziu sua produção artística a mero veículo de ideais conservadoras, mesmo que delas tenha pessoalmente se aproximado nos últimos anos.

De minha parte, continuarei me emocionando ao ouvir “Ai que saudade d’ocê”, “Canção em dois tempos”, “Cantilena de lua cheia”, “Veja (Margarida)”. Terei sempre um nó na garganta ao final de “Saga de Severinin”, “Saga da Amazônia” e “Sete cantigas para voar”. E continuarei a me assombrar ao ouvir “Caso você case”.

O que pensou e disse na internet Vital Farias, suas candidaturas e programas políticos, sua cosmovisão religiosa e moral, isso tudo não me compete avaliar e me interessa pouco. Fica para os biógrafos e historiadores. E deixe o peixe, deixe o rio, que o rio é um fio de inspiração; deixe o canto, deixe voar o azulão, para alegria e festa do meu coração.

Contato: freire.jose@hotmail.com

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