Tornar-se dispensável

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José Carlos Freire
Professor na UFVJM, Campus de Teófilo Otoni/MG

O poeta Vinícius de Morais tematizou bem a dialética de se ter filhos: para nosso sossego, melhor não os ter; mas se não os temos, como sabê-los? É verdade; mas não toda. Dá, sim, para “sabê-los” mesmo sem ser pai ou mãe. Conviver com crianças na família ou com filhos de amigos é também um modo de participar desta aventura. Há quem exerça a paternidade ou a maternidade de um modo lindo, com crianças que não são suas.

Seja como for, é mesmo uma aventura. O engraçado – e, por vezes, assustador – é que eles crescem. Parece trivial esta constatação, mas não é. O envolvimento que temos com o seu processo de desenvolvimento é de tal profundidade que facilmente perdemos de vista o quanto é passageira cada fase. E tiramos fotos, e filmamos momentos, talvez na ilusão de eternizar uma situação, um momento.

Em casa, desde que nossas crias eram pequenas, fazemos essa brincadeira: “Tem certeza que vai crescer mesmo?”. É evidente que vão. Mais ainda: elas querem crescer, como cada um de nós também quis um dia. Por essa razão, cada aniversário é nova constatação da passagem do tempo.

Recentemente, nossa mais velha fez quinze anos. Foi tudo simples e muito bonito, cheio de memórias afetivas. Foi do jeito dela e o mais importante é que ela ficou feliz. Talvez pelo simbolismo da data redonda, o aniversário me fez refletir de modo especial sobre este fato: nós, pais, mães ou quem quer que acompanhe o crescimento de alguém, vamos ficando gradativamente dispensáveis.

Isto aponta para uma das muitas transformações pelas quais passamos ao criar filhos: no começo somos absolutamente importantes e, portanto, indispensáveis; depois, nos tornamos relativamente importantes e ainda um pouco indispensáveis; até que se evidencia que somos apenas importantes e, por isso, dispensáveis.

Que não se confunda, portanto, ser “dispensável” com “não ser importante”. Para nosso consolo, os filhos continuam nos amando, ainda que a adolescência seja essa fase cheia de idas e vindas. Eles nos ouvem, mesmo que a custo. Acatam nossa orientação, mesmo que resmungando. Só que já sabem, melhor que nós, que estão de saída, ainda que possam ficar mais alguns anos em casa. Já começaram a se virar sozinhos, mais do que imaginamos.

É aí que entra o desafio de ser adulto diante de adolescentes. Desafio do qual eu não tenho sequer ideia de como enfrentar. Mas suspeito que uma condição seja fundamental: aceitar que precisamos nos tornar dispensáveis. É o que a sabedoria popular cunhou no ditado “filho é para o mundo”.

Penso que esta lição que o cuidado de filhos nos impõe extrapola em muito a relação entre adultos e suas crias: é a própria condição humana. É o que mostram as típicas situações fortes da vida: um aniversário, um velório, uma aposentadoria, um fim de relação. É quando descobrimos o óbvio: tudo passa. E nós também passamos.

O filho que agora amarra os próprios cadarços; a filha que arruma o próprio cabelo; a tarefa de escola que já fazem sem nossa ajuda; o lanche que preparam sem que estejamos em casa; a festa a que vão sem precisar que os levemos. São os sucessivos pequenos fatos que vão nos dispensando aos poucos até que chegue um ponto em que seremos para eles o que nossos pais se tornaram para nós: uma retaguarda, um porto seguro ao qual se acorre quando preciso e desejado; importantes, sem a menor dúvida, mas não mais indispensáveis.

Um outro velho o ditado diz que o bom mestre é aquele que forma os seus discípulos para que o superem. Bonito em teoria, mas poucos educadores se orientam deste modo. Assim como pais e mães que sofrem por perder sua centralidade, nós educadores também facilmente caímos na ilusão de que os estudantes dependem de nós. É este, aliás, um bom crivo de distinção entre educação tradicional e educação crítica: na primeira, o professor é o centro; na segunda, ele é instrumento para que o estudante crie asas e voe por si.

Nesse ponto, ter filho é uma forma de se aprender a viver. Eu diria mais: é uma forma de se aprender a morrer. Desde a antiguidade grega, a filosofia debate o tema da finitude. Lidar com a passagem do tempo, aceitar as perdas inevitáveis, acatar com serenidade o fechamento de cada ciclo. Pequenos, médios e grandes lutos durante a vida que vão nos preparando, se bem vividos, para o fechamento definitivo de nossa frágil existência que cedo ou tarde virá. Um modo sábio de se encarar a morte, inevitável fim de todos nós.

Termina a festinha de quinze anos da nossa filha. E um leve calafrio me vem ao perceber que, daqui a pouco, será o caçula a passar por isso. E virão tantas outras despedidas e partidas! Recolhemos os enfeites, guardamos as coisas, vamos para casa.

Ela mal se aguenta nas pernas de cansaço. Logo vai para a cama. Com a casa aquietada, invento de ir à cozinha só para constatar se ela já dorme. É um sono bom, de quem começa um novo ciclo. A infância ficou de vez para traz e um futuro a ser construído se abre.

Nossa pequena cresceu. Que ela aprenda os melhores caminhos. Que nos tenha sempre como importantes, assim desejamos, mas que dependa cada vez menos de nós. E, de nossa parte, que nos tornemos o quanto possível a retaguarda, seu porto seguro. Mas sem esquecer a dura lição que a vida nos ensina: tornarmo-nos dispensáveis.

Contato: freire.jose@hotmail.com

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