
Professor na UFVJM, Campus de Teófilo Otoni/MG
Entro no recinto à procura de um pente daqueles antigos, de marca Flamengo, com a metade mais grossa e a outra mais fina. Lembram-me a infância: alguns eram amarronzados, outros dourados. Geralmente vinham em embalagem de plástico transparente. Foi a desculpa que eu encontrei para ir ao Armazém do Cícero, depois de saber, desapontado, que estava para ser fechado. Era o único lugar que ainda se poderia achar um item desses. Mas não precisava de pente, precisava estar ali.
Armazéns, empórios, vendas. Variam os nomes, mas têm em comum a característica de funcionar como pronto-socorro para todas as horas: o que se precisa, geralmente ali se acha. Em geral, carregam o nome dos donos. Armazém do Armando, Empório da Tereza, Venda do Seu Lidirico. Toda pequena cidade teve ou ainda conserva como relíquia esses espaços mágicos. São como portais do tempo por onde se viaja ao passado.
Foi com a vontade de reviver um pouco disso, enquanto ainda era possível, que inventei a necessidade do pente. Merinho procurou, procurou, como quem revira um monte de areia. A cada gaveta ou local que ele olhava, eu tinha a impressão de que saltavam cenas, pessoas, momentos. Não iria submetê-lo a essa busca sem fim. Disse a ele: “Pode deixar, moço! Tranquilo. Tem isqueiro?”. Eu já tinha visto o pacotinho. O importante era realizar o ritual de pedir algo no balcão. Coisa que tanta gente fez desde a época do Velho Cícero, quando, segundo contam, ele dava balas para as crianças quando voltavam da escola.
Nas quase cinco décadas de funcionamento, passou por ali muita gente que contou e ouviu histórias, porque o Armazém do Cícero foi ao longo desse tempo o lugar da conversa, do bate-papo, onde se ia comprar pequenas coisas: um arroz que estava acabando, um pacote de feijão, um café para uma visita inesperada, um litro de óleo que estava no final. Mas o motivo era, sobretudo, este: “ir ao Armazém do Cícero”.
Enquanto o Merinho procura, observo o local. Tudo indica um final de ciclo. Ao centro, a bancada de madeira envolta com panos de renda fixados com grampo – sinal de coisa antiga, mas também de muito zelo. Ali, há alguns meses, ficavam as sacas de arroz, de farinha, de feijão, de alpiste para passarinho. Agora, só a marca da madeira envelhecida e a poeira.
Ao longo das paredes, estantes de aço; algumas com marcas de ferrugem, outras já bastante tortas, mas todas iguaizinhas, formando um conjunto, sinal também de muito capricho de quando foram montadas. Nas prateleiras, pouca mercadoria: um balde, uma mangueira para quintal, dois rolos de corda para laço, colher de pedreiro, enxada, linhas de pesca, algumas cartelas de ovos. Do outro lado, produtos de limpeza escassos: papel higiênico, sabão em pó, alguns detergentes e um solitário galão de amaciante. À direita, caixas de leite, uma lata de achocolatado e pacotes de salgadinhos. Na parte de gelados, algumas poucas latas de refrigerante. Por fim, uma plaquinha triste: “Vendem-se prateleiras”. Tudo remetendo a lacuna e silêncio.
No balcão da frente – meu elemento preferido em estabelecimentos desse tipo – a tampa de vidro, servindo como mostruário de tudo que está embaixo. Aquilo sempre me fascinou! As coloridas prateleiras dos atuais shoppings não chegam perto da beleza de um balcão de armazém, porque ali tudo é colocado cuidadosamente, de modo artesanal, combinando tipo, tamanho e cor. É um grande mosaico que revela o esmero dos donos.
Neste velho balcão de agora, o vidro deixa ver pouca coisa que resta: um pacotinho de agulha de costura, dois pentes coloridos, um coador de café, alguns remédios, um pacote de isqueiro já faltando o que eu pedi, um amarelado caderninho de anotações, algumas canetas, lápis, pincéis de tinta aleatórios e um pacote com apenas um cortador de unha. Sobre o balcão, como que esquecido, o velho porta-canudos verde.
Saio do Armazém com um sentimento estranho. Parte de mim se alegra pela boa conversa e por ter conhecido um lugar tão simples e tão especial; mas também me dá melancolia. Daqui a algumas semanas não haverá mais nada daquilo. Será apenas uma placa de venda, depois uma cerca de proteção para um imóvel demolido; por fim, uma nova e moderna construção que não terá nenhum traço do que ali existiu.
É a vida. É o ciclo do tempo, cruel e implacável. No entanto, há algo de mais impactante. Como alertavam alguns filósofos alemães do início do século passado, há um componente na chamada sociedade moderna que funciona como faca de dois gumes: o progresso. Ele faz avançar a tecnologia, a agilidade, a eficiência. Comparem-se um elevador e uma escadaria; um carro de bois e um automóvel; um supermercado com um velho armazém. Tudo mais prático.
Porém, ao mesmo tempo, tudo com menos vida, menos história, menos experiência. Esta é a chave: durante cinco décadas, o Armazém do Cícero foi um lugar de experiência, muito mais do que um local de venda de produtos. Ali se ia para isto, evidente; mas também porque era bom estar ali. Em um supermercado você não terá um tempo correndo lento, pessoas contando histórias na calçada enquanto jogam quirera de milho aos passarinhos nas manhãs de domingo, um velho rádio tocando canções antigas. Será tudo brilhante, iluminado e chamativo; porém, artificial.
Perde-se muito quando se avança a sociedade. Eis a grande contradição. Alternativa? Não sei. Talvez seja isso mesmo: memórias vão sendo soterradas, histórias vão sendo esquecidas, pessoas singulares vão ficando para trás. Suspeito que desse modo modernizante de vida, calcado na tecnologia e equipamentos, não virá nada de profundo e intenso: apenas superficialidade. Para um caminho distinto, que conservasse de alguma maneira algo do vivido e experimentado, precisaríamos pensar em outra referência, aprendendo, quem sabe, dos povos da floresta, dos que ainda conservam modos de vida coletiva. Mas tais povos, não sem ironia, são exatamente o empecilho ao progresso. Estão sendo exterminados para o bem dos empreendimentos e usinas.
Está certo o Merinho: depois de ter acompanhado o velho pai até sua morte e seguir cuidando do armazém, deve agora tocar o barco: vai com a esposa Aparecida para mais perto da filha que mora longe. Assim como esteve com o pai, agora é a vez do casal, já envelhecido, ficar perto de quem continuará sua história um dia. O Armazém seguirá existindo de outro modo, enquanto houver quem dele se lembre.
Levo o isqueiro para casa. É agora um símbolo que parece ter cinco décadas. Acendo com ele o fogão, coloco água para esquentar. Tomo uma xícara de café em memória de tudo que representou o Armazém do Cícero. Eu, que pouco dele experimentei, sinto-me privilegiado por ali ter estado algumas vezes. Guardarei essa memória como um amuleto a me proteger do sentimento de vazio que me dá ao entrar num grande supermercado.











Quando criança, no final da década de 80, estudava na Escola N. Senhora de Fátima quase todos os dias eu e demais colegas, entrávamos lá para comprar doces e/ou material escolar. Seu Cícero e sua esposa sempre nos atendia com alegria, brincava conosco e nos entregava os produtos prontamente. A última vez que entrei lá foi s cerca de 5 anos para comprar pregos em gramas. Ficará na memória, boa memória de todos nós moradores dos bairros adjacentes. Mas, como bem disse o professor José Carlos: “É a vida. É o ciclo da vida, cruel e implacável.”