Entre a Força do Estado e a Expansão do Crime Organizado

Delegado Geral de Polícia – Aposentado. Prof. de Direito Penal e Processo Penal. Mestre em Ciência das Religiões pela Faculdade Unida de Vitória/ES. Especialização em Combate à corrupção, antiterrorismo e combate ao crime organizado pela Universidade de Salamanca – Espanha. Advogado. Autor de livros
RESUMO: O presente artigo analisa o direito constitucional ao território e sua relação com a expansão da governança criminal no Brasil e na América Latina. Em um cenário em que o crime organizado desafia o poder estatal, impondo normas próprias de controle social, econômico e penal em territórios dominados, questiona-se a efetividade da atuação estatal na preservação da ordem pública. A partir de estudos recentes, constata-se que mais de um quarto da população brasileira vive sob regras impostas por facções criminosas, revelando a falência da capacidade estatal de exercer sua autoridade em determinados espaços. Este trabalho propõe uma reflexão crítica sobre a tensão entre Estado forte, encarceramento em massa e fortalecimento do crime organizado, trazendo fundamentos constitucionais, legais e análises de especialistas para delinear um panorama que desafia a democracia e os direitos fundamentais.
Palavras-chave: Direito ao território; Governança criminal; Crime organizado; Estado forte; Segurança pública.
INTRODUÇÃO
A Constituição Federal de 1988 consagra, em seu artigo 144, que a segurança pública é dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, sendo exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio. Trata-se de função indelegável, essencial à própria sobrevivência da democracia.
No campo das liberdades, o artigo 5º, inciso XV, assegura o direito de locomoção no território nacional em tempo de paz, como expressão maior da cidadania e da soberania popular. No entanto, essa garantia constitucional tem sido restringida, na prática, pela atuação das organizações criminosas, que, em determinadas regiões, assumem o papel de verdadeiros governantes de fato, impondo códigos de conduta, normas penais próprias e sistemas de punição sumária.
Pesquisas recentes revelam que a chamada governança criminal está presente não apenas em estabelecimentos penais, mas também em bairros, cidades inteiras e regiões metropolitanas, com destaque para os eixos Rio de Janeiro e São Paulo. Ali, facções criminosas como o PCC e o Comando Vermelho estruturaram-se em redes que extrapolam o cárcere e se projetam internacionalmente, impondo regras de convivência que substituem a autoridade estatal.
ESTADO FORTE E CRIME ORGANIZADO
Segundo dados divulgados pela Revista Fórum, quase um terço da população brasileira vive sob as regras do crime organizado, o que corresponde a cerca de 50,6 a 61,6 milhões de pessoas. No contexto latino-americano, o Brasil concentra mais da metade dos habitantes submetidos a esse tipo de governança.
A pesquisa coordenada pelo professor Benjamin Lessing, da Universidade de Chicago, revela uma contradição instigante: o crime organizado não prospera apenas na ausência do Estado, mas também em ambientes onde o aparato estatal é forte e ostensivo. O exemplo brasileiro é paradigmático: as maiores facções nasceram nos estados mais ricos e estruturados da Federação.
Para LESSING, altos índices de encarceramento, operações policiais em comunidades e repressão intensiva ao tráfico funcionam como motores da governança criminal, incentivando facções a assumir o controle dos territórios. Assim, paradoxalmente, a força repressiva do Estado pode retroalimentar o poder das organizações criminosas, criando um ciclo vicioso de violência e domínio territorial.
ANÁLISE TEMÁTICA-CONTEXTUAL
O direito ao território, enquanto direito fundamental, deveria ser garantido de forma plena pelo Estado. Todavia, a realidade aponta para um processo de fragmentação da soberania estatal, substituída em determinados espaços por poderes paralelos que se legitimam pela força, pelo medo e pela ausência de alternativas institucionais.
Esse fenômeno de governança criminal se insere em um contexto de falência estrutural do sistema penitenciário, de políticas públicas de segurança descontinuadas e da incapacidade estatal de ocupar, de forma legítima, territórios vulneráveis. A convivência entre Estado formal e Estado paralelo estabelece um campo de disputa permanente, em que a população civil é refém das contradições.
O discurso proferido pelo ministro André Mendonça, durante o 24º Fórum Empresarial do LIDE, ecoa essa crise ao citar Luigi Ferrajoli: vivemos um “colapso da capacidade reguladora da lei”. A ruptura da força normativa do Direito, somada ao déficit de legitimidade política, abre espaço para que o crime organizado se apresente como poder substituto, regulando condutas, resolvendo conflitos e impondo obediência.
Portanto, a governança criminal não pode mais ser tratada apenas como questão de segurança pública. Trata-se de um desafio constitucional, democrático e civilizatório, pois põe em xeque a própria ideia de monopólio estatal da força e a efetividade dos direitos fundamentais.
REFLEXÕES FINAIS
A segurança pública permanece como uma das funções mais sensíveis do Estado moderno, mas ainda não recebe a centralidade que dela se exige. Enquanto saúde e educação podem contar com arranjos cooperativos e até delegações, a segurança não comporta terceirizações: é responsabilidade nuclear do Estado.
Todavia, a negligência, a ausência de políticas de longo prazo, a falta de valorização dos servidores da segurança pública e a precariedade estrutural das instituições policiais criaram um ambiente fértil para a consolidação da governança criminal. Some-se a isso um arcabouço jurídico muitas vezes permissivo, marcado por benefícios processuais e decisões ideologizadas que, em determinadas circunstâncias, colocam em risco o interesse coletivo.
Em consequência, comunidades inteiras tornam-se reféns de facções criminosas, que impõem normas, restringem o direito de ir e vir e assumem, em muitos casos, a função de arbitragem social. Esse quadro revela um triste paradoxo: onde o Estado se omite ou onde atua apenas pela repressão bruta, o crime organizado prospera.
Diante desse cenário, urge que o Brasil reencontre o caminho de uma política de segurança baseada em três pilares fundamentais:
1. Valorização e modernização das instituições policiais;
2. Fortalecimento da inteligência estatal e das políticas de prevenção;
3. Revisão crítica da política criminal e penitenciária, rompendo o ciclo de encarceramento em massa como combustível da expansão das facções.
Em última análise, o direito ao território só se tornará realidade quando o Estado reassumir, com legitimidade, presença e efetividade, seu papel de garantidor da ordem pública e da cidadania.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Senado Federal, 1988.
BRASIL. Lei nº 12.850, de 2 de agosto de 2013. Define organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal.
FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão: teoria do garantismo penal. Madrid: Trotta, 1995.
MENDONÇA, André. Discurso no 24º Fórum Empresarial do LIDE, Rio de Janeiro, 2024.
REVISTA FÓRUM. Quase um terço da população brasileira vive sob regras do crime organizado, aponta estudo. Disponível em: https://revistaforum.com.br/. Acesso em: ago. 2025.










