A transitoriedade

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José Carlos Freire – Professor da UFVJM, Campus de Teófilo Otoni/MG

“Um dia sobre nós também / vai cair o esquecimento / como a chuva no telhado…”. É assim que Paulo Leminski, impiedosamente, define uma dimensão de nossa vida. Sempre foi fecundo o diálogo entre filosofia e literatura. Por vezes os textos literários chegam mais rápido, e sem desvios, a verdades que o filósofo demora a alcançar. No caso do Brasil, país em que as Universidades e um esboço de sistema de ensino somente se constituíram no século XX, é muito comum encontrarmos na literatura elaborações sobre o sentido da vida, a razão de ser das coisas e outras inquietações que são próprias da filosofia.

Seremos esquecidos. Sim, caro leitor. Você, eu, todos nós. Se estivéssemos para fechar um ano menos emblemático que o atual, poderíamos falar de outras coisas. Mas a dureza do nosso tempo exige que tratemos de aspectos nem sempre tão agradáveis, o que não é a primeira vez que ocorre nesta modesta coluna. A doença, a finitude, a morte. Tudo isso tem tomado nossas preocupações de forma muito intensa e eu diria que, apesar do desconforto de pensar nisso, é saudável que o façamos. Pelo menos de forma equilibrada.

O belíssimo filme de animação “Coco” (2017) tem como tema o par morte-memória. No Brasil ganhou o nome “Viva:  A vida é uma festa”. Se você não o assistiu, recomendo muito. É uma linda história que tem como referência a tradicional celebração do Dia dos Mortos no México, comemorado no dia 2 de novembro, assim como nosso Dia de Finados. Porém, diferentemente da tradição católica, na qual se enfatiza a dor da saudade, com a visita aos cemitérios marcada invariavelmente pela comoção, o “Día de los Muertos” é festejado com comida, música e outros elementos que lembrem os falecidos. Assim, as crianças desde cedo aprendem não só a valorizar o passado, mas também o fato de que um dia morrerão. Não cultivam a tristeza, mas a beleza de viver.

Por quanto tempo existiremos? A mensagem do filme é cristalina: o quanto durar nossa existência biológica e, depois da morte, os anos ou décadas nos quais alguém se recordar de nós. E depois? Cairá sobre nós o esquecimento. É certo que a régua de Leminski não vai se aplicar a ele, nem a tantos artistas e figuras que marcaram a história de uma região, de um país ou universalmente. Eles durarão mais. Quanto a nós, pobres mortais, grande massa de bilhões de pessoas que não deixarão grandes feitos, nem estátuas, nem obras artísticas relevantes, será bem diferente. Nossa duração pós-morte será garantida apenas pelos que de nós se lembrarem. E quando o último desses morrer será a derradeira gota de chuva no telhado…

Não vejo problema nisso. Aliás, reconhecer o jogo da vida é uma atitude que nos faz mais livres, mais cientes do que de fato somos. Pó de estrelas. A dificuldade está em ajustar desejo e possibilidade. Gostaríamos de ser eternos. A noção de eternidade é bonita. Entre outras fontes, chegou-nos pela herança judaico-cristã. Pode-se dizer que ela consiste no entendimento de que o universo, que é passageiro, está assentado sobre bases que não passam. É uma ideia tranquilizadora, uma vez que a vida biológica de cada um de nós seria apenas uma cena de um filme maior. Nesse caso, um filme que não tem fim.

Será assim? Não cabe à filosofia normatizar a crença de ninguém. Ela trata da vida concreta e suas nuanças, não do sobrenatural. Mas é seu papel fazer a crítica das ideias religiosas, sobretudo quando estas se mostram incompatíveis com princípios humanitários fundamentais. O que sugiro aqui é algo bem menos ambicioso: o problema de se internalizar o eterno no transitório. Explico-me. Por estarmos habituados à noção de eternidade, é comum que a projetemos naquilo que é passageiro. É assim que formamos ideias simples, mas muito eficientes como a “vocação profissional”, o “lugar em que viverei até o fim”, a “pessoa da minha vida”. Sem falar no “felizes para sempre” dos contos, filmes e novelas. Como se houvesse a garantia de que algo jamais acabará. Ocorre que esta expectativa não bate com a realidade. Em nossa jornada vamos experimentando inúmeros fechamentos de ciclo, um após outro; o que ontem parecia eterno hoje é página virada. É o ofício do tempo.

No campo específico das relações afetivas, que são ora nosso abrigo em meio à tempestade, ora a própria tempestade, a vivência da transitoriedade é um imenso desafio. Novamente é a literatura que capta isso de forma brilhante. O poema “Soneto da fidelidade” de Vinícius de Moraes é muito usado no início dos relacionamentos como promessa de amor. E ele é. Mas deveria ser tomado também em sua dimensão menos simpática: se os primeiros versos são sincera expressão de um sentimento que se pretende infinito, os últimos demonstram a consciência de que tudo que está sob o sol é passageiro, “posto que é chama”. Não há nada que lembre eternidade na expressão “…que seja infinito enquanto dure”. Há, sim o desejo de estar com aquela pessoa “em cada vão momento”, o tempo que for possível.

Não conheço muito dos ritos religiosos de casamento. O que sei é que no catolicismo há o momento em que o casal faz as juras de amor. Eis aí uma boa proposta a ser encaminhada ao Papa para se atualizar o rito do casamento: que ele tenha como referência o poema do Vinícius.

4 COMENTÁRIOS

  1. Excelente matéria professor. Bem propícia para o momento que estamos vivendo e ao mesmo tempo nos leva a uma reflexão mais profunda sobre nossa vida e sobre o que estamos fazemos dela.

    • Olá Márcia! Obrigado pelo comentário. Acredito que seja importante refletir mesmo sobre nossa vida! É uma aventura grandiosa a existência e merece toda nossa atenção. abraço.

    • Grande Cídio! Sim… o intervalo. Ou como diria o Guimarães, a travessia. O importante é viver da melhor forma e com intensidade cada ‘vão momento’. É a maneira de viver o presente bem, no futuro, ter memória de um caminho feito. abraço meu caro.

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