A transitoriedade

4
690
José Carlos Freire – Professor da UFVJM, Campus de Teófilo Otoni/MG

“Um dia sobre nós também / vai cair o esquecimento / como a chuva no telhado…”. É assim que Paulo Leminski, impiedosamente, define uma dimensão de nossa vida. Sempre foi fecundo o diálogo entre filosofia e literatura. Por vezes os textos literários chegam mais rápido, e sem desvios, a verdades que o filósofo demora a alcançar. No caso do Brasil, país em que as Universidades e um esboço de sistema de ensino somente se constituíram no século XX, é muito comum encontrarmos na literatura elaborações sobre o sentido da vida, a razão de ser das coisas e outras inquietações que são próprias da filosofia.

Seremos esquecidos. Sim, caro leitor. Você, eu, todos nós. Se estivéssemos para fechar um ano menos emblemático que o atual, poderíamos falar de outras coisas. Mas a dureza do nosso tempo exige que tratemos de aspectos nem sempre tão agradáveis, o que não é a primeira vez que ocorre nesta modesta coluna. A doença, a finitude, a morte. Tudo isso tem tomado nossas preocupações de forma muito intensa e eu diria que, apesar do desconforto de pensar nisso, é saudável que o façamos. Pelo menos de forma equilibrada.

O belíssimo filme de animação “Coco” (2017) tem como tema o par morte-memória. No Brasil ganhou o nome “Viva:  A vida é uma festa”. Se você não o assistiu, recomendo muito. É uma linda história que tem como referência a tradicional celebração do Dia dos Mortos no México, comemorado no dia 2 de novembro, assim como nosso Dia de Finados. Porém, diferentemente da tradição católica, na qual se enfatiza a dor da saudade, com a visita aos cemitérios marcada invariavelmente pela comoção, o “Día de los Muertos” é festejado com comida, música e outros elementos que lembrem os falecidos. Assim, as crianças desde cedo aprendem não só a valorizar o passado, mas também o fato de que um dia morrerão. Não cultivam a tristeza, mas a beleza de viver.

Por quanto tempo existiremos? A mensagem do filme é cristalina: o quanto durar nossa existência biológica e, depois da morte, os anos ou décadas nos quais alguém se recordar de nós. E depois? Cairá sobre nós o esquecimento. É certo que a régua de Leminski não vai se aplicar a ele, nem a tantos artistas e figuras que marcaram a história de uma região, de um país ou universalmente. Eles durarão mais. Quanto a nós, pobres mortais, grande massa de bilhões de pessoas que não deixarão grandes feitos, nem estátuas, nem obras artísticas relevantes, será bem diferente. Nossa duração pós-morte será garantida apenas pelos que de nós se lembrarem. E quando o último desses morrer será a derradeira gota de chuva no telhado…

Não vejo problema nisso. Aliás, reconhecer o jogo da vida é uma atitude que nos faz mais livres, mais cientes do que de fato somos. Pó de estrelas. A dificuldade está em ajustar desejo e possibilidade. Gostaríamos de ser eternos. A noção de eternidade é bonita. Entre outras fontes, chegou-nos pela herança judaico-cristã. Pode-se dizer que ela consiste no entendimento de que o universo, que é passageiro, está assentado sobre bases que não passam. É uma ideia tranquilizadora, uma vez que a vida biológica de cada um de nós seria apenas uma cena de um filme maior. Nesse caso, um filme que não tem fim.

Será assim? Não cabe à filosofia normatizar a crença de ninguém. Ela trata da vida concreta e suas nuanças, não do sobrenatural. Mas é seu papel fazer a crítica das ideias religiosas, sobretudo quando estas se mostram incompatíveis com princípios humanitários fundamentais. O que sugiro aqui é algo bem menos ambicioso: o problema de se internalizar o eterno no transitório. Explico-me. Por estarmos habituados à noção de eternidade, é comum que a projetemos naquilo que é passageiro. É assim que formamos ideias simples, mas muito eficientes como a “vocação profissional”, o “lugar em que viverei até o fim”, a “pessoa da minha vida”. Sem falar no “felizes para sempre” dos contos, filmes e novelas. Como se houvesse a garantia de que algo jamais acabará. Ocorre que esta expectativa não bate com a realidade. Em nossa jornada vamos experimentando inúmeros fechamentos de ciclo, um após outro; o que ontem parecia eterno hoje é página virada. É o ofício do tempo.

No campo específico das relações afetivas, que são ora nosso abrigo em meio à tempestade, ora a própria tempestade, a vivência da transitoriedade é um imenso desafio. Novamente é a literatura que capta isso de forma brilhante. O poema “Soneto da fidelidade” de Vinícius de Moraes é muito usado no início dos relacionamentos como promessa de amor. E ele é. Mas deveria ser tomado também em sua dimensão menos simpática: se os primeiros versos são sincera expressão de um sentimento que se pretende infinito, os últimos demonstram a consciência de que tudo que está sob o sol é passageiro, “posto que é chama”. Não há nada que lembre eternidade na expressão “…que seja infinito enquanto dure”. Há, sim o desejo de estar com aquela pessoa “em cada vão momento”, o tempo que for possível.

Não conheço muito dos ritos religiosos de casamento. O que sei é que no catolicismo há o momento em que o casal faz as juras de amor. Eis aí uma boa proposta a ser encaminhada ao Papa para se atualizar o rito do casamento: que ele tenha como referência o poema do Vinícius.

4 COMENTÁRIOS

  1. Excelente matéria professor. Bem propícia para o momento que estamos vivendo e ao mesmo tempo nos leva a uma reflexão mais profunda sobre nossa vida e sobre o que estamos fazemos dela.

    • Olá Márcia! Obrigado pelo comentário. Acredito que seja importante refletir mesmo sobre nossa vida! É uma aventura grandiosa a existência e merece toda nossa atenção. abraço.

    • Grande Cídio! Sim… o intervalo. Ou como diria o Guimarães, a travessia. O importante é viver da melhor forma e com intensidade cada ‘vão momento’. É a maneira de viver o presente bem, no futuro, ter memória de um caminho feito. abraço meu caro.

Deixe um comentário para José Freire Cancelar resposta

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui