Na última semana, a briga entre um soldado e um cabo da Polícia Militar do Estado de São Paulo, no centro da capital paulista, gerou uma série de análises sobre o fato. Dentre as quais, de pesquisadores do campo da segurança pública que associaram o ocorrido à pressão psicológica sofrida pelos policiais paulistas. Em entrevista ao Uol Notícias, o presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública – FBSP, Renato Sérgio de Lima afirmou […] que há um quadro de pressão tão intenso que, ao menor gatilho de ameaça ou perda de controle da situação, os policiais estão dando sinais de que é mais do que urgente investir na saúde do policial brasileiro”. Ainda na matéria da Uol, o professor Rafael Alcadipani, da Fundação Getúlio Vargas – FGV, confirmou que “o policial que está sacando uma arma contra o seu superior hierárquico mostra que está com uma questão de saúde mental muito séria que precisa ser cuidada”.
Por outro lado, a população em geral costuma interpretar um fato como esse de forma diversa. Pois bem, a notícia viralizou nas redes sociais e foi possível observarmos frases do tipo: “Se faz isso com o próprio colega, o que faria com um cidadão comum?”; “Que vergonha, isso é falta de preparo para a profissão”; dentre outras afirmações. Os posicionamentos foram de pessoas comuns, que têm suas próprias construções sobre o serviço de polícia e os profissionais associados à segurança pública. Entre as pessoas que não se dedicam ao estudo da área, raros são aqueles que conseguem enxergar que pode ter algo bastante sério acontecendo para que uma atitude como aquela ocorra explicitamente.
Por uma questão de preservação da segurança dos próprios policiais e também para manter em sigilo o planejamento das atividades em determinados setores, pouco se expõe ou se diz sobre a complexidade do serviço policial. Dado o nível de “fechamento” das instituições, mesmo outros setores públicos, desconhecem como se dá a cadeia de comando entre as equipes e como se desenvolve o trabalho profissional de policiais da ponta da linha, que lidam diretamente com a população. Por assim ser, interpretações equivocadas sobre suas condutas ocorrem com relativa frequência e por diferentes agentes.
O campo da segurança, seja ela de natureza pública ou privada, exige dos profissionais disposição física e mental para atuação quando necessário. E esta exigência não se restringe ao período de treinamento para ingresso nas instituições de segurança. O preparo mental precede a preparação física e o corpo nem sempre responde como a natureza do serviço requer.
A segurança pública é um dos gargalos para a garantia da qualidade de vida dos brasileiros. É um dos setores que mais é lembrado nos períodos eleitorais pelos políticos, uma vez que todos eles sabem que esta é uma demanda latente e permanente da população. Para atender a este anseio, há investimento em concursos públicos pelos governos e campanhas pesadas de marketing privado das escolas preparatórias para ingresso nas carreiras. Nessa fase, pouco ou nada se discute sobre as pressões associadas à natureza do serviço após o ingresso nas instituições.
Para a comunidade em geral, ostentar um cargo público vinculado à segurança representa exercer poder sobre as demais pessoas. É ter direito de portar uma arma de fogo, um distintivo, conduzir uma viatura, vestir uma farda e contar com estabilidade no emprego. Para muitos e muitas, a imagem de um policial se resume ao glamour de estar em uma condição de poder que apenas alguns chegam. No entanto, a realidade pode não estar representada apenas por estes elementos. Além das pressões externas, associadas ao cumprimento do dever, pressões de natureza interinstitucionais também são refletidas em atitudes como a que pudemos ver no caso da briga entre policiais no centro de São Paulo.
Para dirimir parte dos problemas relacionados ao trabalho profissional, os governos já têm a opção de colocarem em prática o Programa Nacional de Valorização Profissional, criado no âmbito do Sistema Único de Segurança Pública, aprovado em 2018. No entanto, segundo Renato Sérgio de Lima, os governos […] vão jogando com a barriga a vida dos policiais, e da população como um todo”.
Em um estudo sobre o suicídio de policiais militares do estado de São Paulo, Guilherme Soto Reis pontuou o seguinte: “[…]médicos não são responsabilizados pelo surgimento ou aumento de uma doença, mas policiais, especialmente os militares, são responsabilizados pelo surgimento ou aumento da criminalidade; para alguns, tal analogia pode soar deslocada, mas não é, o aumento da criminalidade em uma região, assim como de uma doença, é ocasionado por diversos fatores alheios à atuação da polícia, fatores como crises financeiras, falta de infraestrutura, baixa qualidade da educação, marginalização e isolamento social, entre outros”.
Este pesquisador ainda destacou que por usarem fardas, os militares estão expostos às cobranças pelos erros de outros policiais. E isso ocorre, em certa medida, tensionado pelas colocações da mídia que, antes mesmo de investigação, admite um pré-julgamento do policial militar, influenciando a sociedade de tal forma, que antes mesmo de ouvidos sobre o fato, já são condenados antecipadamente pela opinião pública.
Questões internas às corporações, alheias ao conhecimento da população, também influenciam na saúde mental dos policiais e, consequentemente, na prestação de serviço à comunidade. Dentre os quais, as mudanças repentinas de função e horários, que alteram, sobremaneira, a rotina familiar e pessoal, causando transtornos incalculáveis. Na pesquisa de Reis, “Segundo os entrevistados, por possuir em suas bases fundamentais elementos como coragem e resiliência, policiais que procuram tratamentos ou que admitem estar com problemas de saúde mental são por vezes vistos como “fracos” ou marginalizados por uma parte dos demais, chegando ao ponto destes não aceitarem trabalhar na mesma viatura com os mesmos, isolá-los socialmente ou fazer brincadeiras ofensivas. Por presenciarem tais ocorrências, vários policiais evitam tratamentos ou os procuram quando a situação já está em um estágio extremamente avançado e muitas vezes irreversível […]”. No interior dos estados, especialmente os maiores, as corporações ainda enfrentam a gradativa diminuição de efetivo policial, o que traduz sobrecarga de serviço aos que estão ativos e maior vulnerabilidade frente aos perigos da profissão.
Somado aos riscos em razão da função, em muitos estados, os policiais têm problemas relacionados aos salários. A PM paulista, por exemplo, oferece um dos mais baixos salários iniciais: R$ 3.143,00 (bruto). Na PM mineira, os soldados formados contam com R$ 4.098,00 (bruto). Com os descontos do fundo de aposentadoria e saúde, a carreira inicial oferece pouco mais de três salários mínimos aos policiais em Minas. Se considerarmos os rendimentos da massa populacional, o salário de um policial está acima da média.
No entanto, se levarmos em conta a natureza do trabalho, as restrições ao convívio social e familiar e todos os elementos que ele exige de cada profissional, inclusive, reserva financeira para custear um advogado para fazer sua defesa em caso de envolvimento em alguma situação que demande investigação e intervenção da justiça, não podemos considerar estes valores, bons salários.
(Referências: Site Uol, “Briga por almoço mostra pressão psicológica de PMs, dizem pesquisadores”. https://www.bol.uol.com.br/noticias/2020/12/05/briga-por-almoco-mostra-pressao-psicologica-de-pms-dizem-pesquisadores.htm ; Reis, G.S. “Suicídio de Policiais Militares do Estado de São Paulo”. Insper, 2020; Sobre o salário inicial dos policiais: https://noticias.r7.com/economia/veja-os-salarios-iniciais-da-pm-no-pais-do-ceara-e-um-dos-mais-baixos-23022020).