Cicatrizes da alma: as marcas da violência sofrida e superada por Gislane Braun

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Juliana Lemes da Cruz. Doutoranda em Política Social – UFF. Pesquisadora GEPAF/UFVJM. Coordenadora do Projeto MLV. Contato: julianalemes@id.uff.br

Mais uma vez, retomo este tema que parece sem fim. A cada conversa com mulheres que romperam ciclos violentos, novas histórias de reconhecimento dos abusos sofridos e de superação. Com a devida autorização para exposição de sua história e imagens a ela relacionadas, descrevo, a seguir, o relato de vida da Gislane Braun. Ela é mãe de dois filhos adolescentes, nascida no município de Teófilo Otoni, é taxista, confeiteira e artesã. Considera-se uma mulher livre de violência e independente.

Na infância, conviveu com a violência masculina materializada na postura do pai. Sua mãe, calada, suportou as agressões até a morte dele. Antes disso, Gislane chegou a fugir de casa e procurar ajuda de pessoas que não conhecia. Após a fuga das situações violentas, Gislane, com 19 anos, conheceu seu ex-companheiro e se instalou em sua casa. “[…] ele me cativou dizendo que ali ninguém iria me fazer nenhum mal. Eu não o amava, mas, com o carinho, atenção e cuidado que ele tinha comigo acabei me apaixonando […] isso gerou uma confusão de sentimentos, pois era algo que eu procurava e não tinha. No início, tudo ia muito bem, me sentia amada, respeitada, querida, ele era tudo o que eu desejava ou aparentemente achava que era. Mas, aí, começaram algumas brigas e discussões. Entramos num ciclo vicioso, vai…volta. O ciúme aumentava cada dia mais e com ele, as brigas sem motivo”.

Gislane permaneceu 14 anos no convívio marital com seu ex-companheiro. A primeira agressão física teria ocorrido na fazenda que eles moravam, a primogênita do casal tinha apenas 9 meses de vida. “[…] ele ficou tão agressivo comigo naquele dia que me bateu de chinelo enquanto eu amamentava minha bebê deitada no sofá. Eu só tentava proteger minha filha dos golpes que ele dava, fiquei muito machucada, com as pernas roxas. Eu coloquei minha bebê no colo da empregada e saí correndo pro meio do mato, no escuro. Ele veio atrás de mim com a arma na mão, disparou para cima, pra ver se eu saía correndo, pra saber onde eu estava. Orei a Deus e pedi que protegesse minha filha. Andei 20 km a pé, toda machucada, até chegar na Delegacia. Fiz B.O e exame de corpo de delito”. A situação poderia ter tido um fim naquela noite, mas, como ela disse: “[…] acabou não dando em nada […]”. Gislane perdoou, por medo e por dependência econômica. “[…] como em tantas outras histórias de relacionamentos abusivos, ele pediu perdão e eu perdoei”.

Algum tempo depois, quando já tinha seu segundo filho, um menino, a violência se intensificou. O álcool teria entrado em cena e tornado aquele homem ainda mais agressivo. Gislane relata que quando ele estava sóbrio, a família vivia momentos de muita alegria. Certa noite, ele chegou bastante exaltado, encontrou todos dormindo e começou a gritar, partindo para a agressão. “[…] deu socos na minha cabeça, puxando pelo cabelo para fora da cama. Meus dois filhos começaram a bater no pai e aquela cena triste, foi a última vez […]”. Nesta etapa, a Gislane estava morando na cidade e já fazia uso de medicamentos antidepressivos. “[…] tentei me matar tomando muitos remédios, não tinha forças para buscar por ajuda, sentia dentro de mim um vazio e um sentimento de inferioridade e tristeza. Eu me olhava no espelho e não me reconhecia, me sentia feia, velha, inútil. Ele me dizia na cara que ninguém me queria, que eu era feia, cheia de espinhas… eu acreditava. […] Apesar de viver numa mansão com piscina, carros, nada disso valia a pena, pois não estava feliz. […] Após o divórcio, no desespero de assinar logo e me ver livre daquela situação, eu não li e acabei abrindo mão de tudo, até dos meus filhos”.

Logo após, por interferência do seu ex-companheiro, pelas relações que tinha, perdeu o emprego que havia conseguido e foi despejada da casa onde morava. “[…] cedi, entreguei meus filhos porque não tive para onde ir”. Hoje, revela que tem uma imensa resistência com relação aos homens, “[…] não deixo que se aproximem de mim. Superei as agressões, mas o medo ainda predomina”. Gislane enfatizou que tinha uma imensa dificuldade em perceber que poderia caminhar sozinha e que não precisava do seu ex para nada.

No período que buscava refazer sua vida, conheceu uma pessoa que chamou de anjo enviado por Deus: sua companheira e amiga que, a acolheu com paciência, carinho e amor. Gislane construiu uma nova união distante dali, onde se sente bem consigo mesma e mais forte para enfrentar os obstáculos que vierem. Gislane achava que era culpada pelo comportamento agressivo do seu ex-companheiro. Atualmente, cinco anos depois do rompimento definitivo, viu que encarar seu passado foi crucial. Retornou há pouco tempo de São Paulo, ainda com feridas, mas que já não doem mais “[…] hoje, sei que sou um exemplo de superação para as mulheres que passam pelo mesmo problema […]”. Gislane deixa palavras de encorajamento, incentivando as mulheres a procurarem ajuda “[…] seja lá qual for a situação, procure ajuda. Afaste-se do agressor, não tenha medo, o medo paralisa. Fique longe até se sentir mais forte para enfrentar a situação, cuide-se, ame-se, nós somos as meninas dos olhos de Deus. Se eu consegui, você também consegue. […] se tiver medo, vá assim mesmo. Peça ajuda”.

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