CINE PALÁCIO

0
1633
Luciano Alberto de Castro
Cronista e professor da Universidade Federal de Goiás, é mestre em odontologia pela Universidade Federal de Goiás (UFG), Doutor em ciências da saúde (UFG), Professor adjunto da Faculdade de odontologia da UFG

Escutei Caetano Veloso dizer, numa entrevista, que havia saído da Bahia aos 18 anos contra a sua vontade. Naquele tempo, decerto, preferiria a vida simples e vagarosa de Santo Amaro. Seria funcionário público, pescador, lutaria para purificar o Subaé; mas o destino o jogou no vórtice do mundo (pra nossa sorte). Quando saí de Teófilo Otoni, na insensatez dos meus 17 anos, eu o fiz de caso pensado. Era um passarinho de voo curto, como um tiziu, que queria virar andorinha e migrar pra outras paragens. As aves migratórias buscam alimento farto e clima mais ameno; eu ansiava pelas sabenças (ainda as persigo até hoje). Curioso é que a comichão de sair não matou o desejo de voltar. Era chegar julho e janeiro e lá estava eu, pisando o solo do Mucuri. Numa dessas idas sazonais, aborreceu-me a notícia da demolição do Cine Palácio.

O primeiro sentimento que me acudiu foi a saudade. Ainda que o tempo imprima em nós certo astigmatismo que nos faz ver o passado sempre tingido de azul, o cinema nos remete aos dias felizes. Grandes amizades, risadas plenas, sobressaltos, namoros (paqueras, como se dizia), beijos e outras ilicitudes sob a escuridão. As matinês no Palácio tinham cheiro de pipoca e drops multicoloridos. Era um mundo gigantesco, desproporcional ao meu tamanho. Antes do filme, o canal 100 mostrava os clássicos do futebol em close e câmera lenta; e eu, também em câmera lenta, assistia deslumbrado. Olha, vai começar! Antes, os slides comerciais. Farmácia Indiana. Magda Magazin. Ô Bem Bolado. “Começa logo!”, gritava um impaciente. Enfim, as trombetas da 20th Century Fox. Silêncio total. Começava a viagem. Era nosso Cinema Paradiso.

Depois da nostalgia, vem a pergunta: por que demoliram o Cine Palácio? Distante da cidade e dos fatos, é temerário opinar. Mas tenho cá minhas suspeitas. O capital. Quem derrubou o Cine Palácio foi o capital. Qualquer outro elemento será frágil frente ao l’argent. Pelo que me consta, a Praça Tiradentes é tombada, logo, todos os prédios históricos do entorno da Praça devem (ou deveriam) ser igualmente preservados. Bobagem. Os processos legais no Brasil são um convite à transgressão. Primeiro se transgride; depois, se discute. Se negocia. Se posterga. Se esquece. Há dois lados: o empresário e o poder público. Por lei, ambos deveriam zelar pelo patrimônio, mas impera o pragmatismo. O empresário, a não ser que seja um mecenas, não preserva esse patrimônio porque não lhe dá lucro. O poder público não o preserva porque é caro e não dá voto. Implicitamente, ambos pensam: “Às favas com a cultura!”.

Em verdade, vos digo que há mais um lado nessa história — como na música do Skank que diz que tudo tem três lados —: a população da cidade. Arrisco o palpite de que a maioria das pessoas apoiou a destruição do velho cinema e a construção da moderna e iluminada loja de sapatos. Até o nome é mais chic. Cine Palácio é como jogo de damas: coisa de velho. Teófilo Otoni precisa do novo, do desenvolvimento, do emprego! Falou-se em geração de 100 novos empregos (mais uma vez, me lembrei do canal 100). E outra: quem quiser assistir a filmes tem o Netflix, no conforto da sua casa. Que venha o progresso! Penso que cinema, literatura, pintura e história encontram cada vez menos adeptos. O país foi se emburrecendo, tornando-se mais cada vez mais fisiológico, duro, pragmático. Cultura foi virando mimimi. O Cine Palácio não resistiria mesmo a essa tríade adversa.

Perdoe-me, leitor progressista, mas a nostalgia me assalta novamente. Teimo em pensar que a história poderia ter sido diferente. Um bem costurado acordo público-privado teria salvo o nosso gigante. Sonhei com o Palácio restaurado, excelso e imponente, iluminando a praça. Na próxima viagem, me apanharia sentado frouxamente, numa daquelas olorosas poltronas, assistindo a um show de Paulinho Pedra Azul ou rindo com Saulo Laranjeira. Forçando um pouco mais, estaria no jardim, sentado à mesa, bebendo cerveja com os velhos amigos e ouvindo chorinho ou MPB. Se oriente, rapaz (salve Gil, 7.8), volte pro mundo real. O velho Palácio se foi pra sempre. Como souvenir nostálgico, resta-me a poltrona de imbuia que comprei na última vez que estive em Teófilo Otoni. Incrível como ainda preserva o mesmo cheiro. De vez em quando, afundo o corpo nela, fecho os olhos e viajo para os tempos do meu Cinema Paradiso. (Goiânia, junho de 2020).

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui