Escutei Caetano Veloso dizer, numa entrevista, que havia saído da Bahia aos 18 anos contra a sua vontade. Naquele tempo, decerto, preferiria a vida simples e vagarosa de Santo Amaro. Seria funcionário público, pescador, lutaria para purificar o Subaé; mas o destino o jogou no vórtice do mundo (pra nossa sorte). Quando saí de Teófilo Otoni, na insensatez dos meus 17 anos, eu o fiz de caso pensado. Era um passarinho de voo curto, como um tiziu, que queria virar andorinha e migrar pra outras paragens. As aves migratórias buscam alimento farto e clima mais ameno; eu ansiava pelas sabenças (ainda as persigo até hoje). Curioso é que a comichão de sair não matou o desejo de voltar. Era chegar julho e janeiro e lá estava eu, pisando o solo do Mucuri. Numa dessas idas sazonais, aborreceu-me a notícia da demolição do Cine Palácio.
O primeiro sentimento que me acudiu foi a saudade. Ainda que o tempo imprima em nós certo astigmatismo que nos faz ver o passado sempre tingido de azul, o cinema nos remete aos dias felizes. Grandes amizades, risadas plenas, sobressaltos, namoros (paqueras, como se dizia), beijos e outras ilicitudes sob a escuridão. As matinês no Palácio tinham cheiro de pipoca e drops multicoloridos. Era um mundo gigantesco, desproporcional ao meu tamanho. Antes do filme, o canal 100 mostrava os clássicos do futebol em close e câmera lenta; e eu, também em câmera lenta, assistia deslumbrado. Olha, vai começar! Antes, os slides comerciais. Farmácia Indiana. Magda Magazin. Ô Bem Bolado. “Começa logo!”, gritava um impaciente. Enfim, as trombetas da 20th Century Fox. Silêncio total. Começava a viagem. Era nosso Cinema Paradiso.
Depois da nostalgia, vem a pergunta: por que demoliram o Cine Palácio? Distante da cidade e dos fatos, é temerário opinar. Mas tenho cá minhas suspeitas. O capital. Quem derrubou o Cine Palácio foi o capital. Qualquer outro elemento será frágil frente ao l’argent. Pelo que me consta, a Praça Tiradentes é tombada, logo, todos os prédios históricos do entorno da Praça devem (ou deveriam) ser igualmente preservados. Bobagem. Os processos legais no Brasil são um convite à transgressão. Primeiro se transgride; depois, se discute. Se negocia. Se posterga. Se esquece. Há dois lados: o empresário e o poder público. Por lei, ambos deveriam zelar pelo patrimônio, mas impera o pragmatismo. O empresário, a não ser que seja um mecenas, não preserva esse patrimônio porque não lhe dá lucro. O poder público não o preserva porque é caro e não dá voto. Implicitamente, ambos pensam: “Às favas com a cultura!”.
Em verdade, vos digo que há mais um lado nessa história — como na música do Skank que diz que tudo tem três lados —: a população da cidade. Arrisco o palpite de que a maioria das pessoas apoiou a destruição do velho cinema e a construção da moderna e iluminada loja de sapatos. Até o nome é mais chic. Cine Palácio é como jogo de damas: coisa de velho. Teófilo Otoni precisa do novo, do desenvolvimento, do emprego! Falou-se em geração de 100 novos empregos (mais uma vez, me lembrei do canal 100). E outra: quem quiser assistir a filmes tem o Netflix, no conforto da sua casa. Que venha o progresso! Penso que cinema, literatura, pintura e história encontram cada vez menos adeptos. O país foi se emburrecendo, tornando-se mais cada vez mais fisiológico, duro, pragmático. Cultura foi virando mimimi. O Cine Palácio não resistiria mesmo a essa tríade adversa.
Perdoe-me, leitor progressista, mas a nostalgia me assalta novamente. Teimo em pensar que a história poderia ter sido diferente. Um bem costurado acordo público-privado teria salvo o nosso gigante. Sonhei com o Palácio restaurado, excelso e imponente, iluminando a praça. Na próxima viagem, me apanharia sentado frouxamente, numa daquelas olorosas poltronas, assistindo a um show de Paulinho Pedra Azul ou rindo com Saulo Laranjeira. Forçando um pouco mais, estaria no jardim, sentado à mesa, bebendo cerveja com os velhos amigos e ouvindo chorinho ou MPB. Se oriente, rapaz (salve Gil, 7.8), volte pro mundo real. O velho Palácio se foi pra sempre. Como souvenir nostálgico, resta-me a poltrona de imbuia que comprei na última vez que estive em Teófilo Otoni. Incrível como ainda preserva o mesmo cheiro. De vez em quando, afundo o corpo nela, fecho os olhos e viajo para os tempos do meu Cinema Paradiso. (Goiânia, junho de 2020).