Para as mulheres, o amor é algo identitário, lugar que se colocam dispostas a abrir mão de si mesmas, inclusive, se isso exigir sacrifícios. Em sociedades como a nossa, onde nascer do sexo feminino ou masculino são precondições para as relações subjetivas e objetivas que teremos ao longo da vida, os homens apreendem a amar várias coisas e as mulheres, principalmente, apreendem a amar os homens. Amá-los, por sua vez, pode exigir delas dedicação e gasto de energia, proporcionais ao que os homens se propõem diante de suas profissões.
Esse modo de construir as relações afetivas, baseada na centralidade masculina e na desigualdade entre os gêneros, está associado às relações de poder, que impulsionam nas mulheres a dependência emocional. Isso se deve, em grande medida, aos estímulos diários a que todos estamos expostos por meio das eficazes tecnologias de gênero: revistas, filmes, músicas, novelas, dentre outras.
Nesses espaços, as relações heterossexuais são tratadas de forma a estabelecer padrões estéticos e morais, especialmente, às mulheres. Nesse contexto, entra em ação o que a pesquisadora Valeska Zanello chama de “dispositivo amoroso”. Segundo a autora, este elemento envolve o ciclo de vida da mulher e a condiciona a atribuir um valor exacerbado à figura masculina ao seu lado, em detrimento da companhia de si própria. Trata-se de condição que força as mulheres a se colocarem como objetos em uma “prateleira do amor”. Nesse espaço, a depender dos seus atributos estéticos e morais, elas são “escolhidas” dentre as demais. Os piores lugares dessa prateleira são das mulheres negras, velhas e gordas.
A partir do século XX, com a expansão do capitalismo e do individualismo, tornar-se bonita transformou-se em um dever ético para o público feminino. Quanto mais insatisfeita com sua imagem física, mais a mulher consome. Portanto, a venda do ideal de beleza tem sido impulsionada pelo mercado que, ciente das vulnerabilidades das mulheres, as exploram de forma continuada. Na busca de ser escolhida na prateleira do amor, as mulheres permitem rivalizar umas com as outras. Nesse cenário de disputa, os homens, eleitos como avaliadores da estética e da moral das mulheres, são os únicos a aferir lucro com essa dinâmica. E mais, nas situações de julgamento, não importa o quão desprovido de beleza o sujeito seja. Como diz a autora Valeska, ele pode ser um “perebado”, que ainda assim, é legitimado para avaliar uma mulher e se sente no direito de fazê-lo.
O botão de vulnerabilidade da mulher é ser escolhida. Por isso, sem esforço, um homem “perebado” que se mostra gentil e romântico, facilmente, vira príncipe. Mais uma vez, percebe-se o funcionamento do dispositivo amoroso como gerador de expectativa nas mulheres, que farão loucuras para manter relacionamentos adoecidos porque foram ensinadas que têm o poder de transformar ogros em príncipes pela via do amor.
Abrir mão de si para se dedicar ao bem-estar do outro, ao contrário do que ensinaram às mulheres, não é uma habilidade ou próprio da natureza feminina, é sim, algo que foi ensinado desde a infância, um mecanismo de controle comportamental das mulheres, que nem elas se dão conta. As formas de atuação do dispositivo amoroso na vida das mulheres projetam o silêncio como fórmula da paz e da preservação das relações. Conforme sinalizou a pesquisadora Valeska, é necessário compreendermos esta dinâmica, falarmos sobre ela, para que outras formas de ser mulher e vivenciar os afetos sejam construídas e ensinadas. Obra de referência: Saúde mental, gênero e dispositivos: cultura e processos de subjetivação |Valeska Zanello, 2018.