
Doutora em Política Social (UFF).
Conselheira do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Contato: lemes.jlc@gmail.com | @julianalemesoficial
O caso da mulher agredida pelo namorado no espaço de um elevador gerou uma revolta popular incomum. Isso porque, não foi uma agressão corriqueira, daquelas que muitas mulheres deixam passar e que familiares que presenciam arriscam negligenciar. O episódio que repercutiu nesta semana foi chocante até para profissionais de segurança pública bastante experimentados na área.

A situação se tornou pública pela divulgação de imagens do sistema de segurança de um condomínio localizado em Natal, capital do Rio Grande do Norte. As imagens mostram um casal, aparentemente discutindo, logo em seguida, o homem, identificado como Igor Cabral, de 29 anos, efetua uma sequência de 61 socos no rosto da mulher, de 35 anos, identificada como Juliana Soares. A ação durou pouco mais de 30 segundos e resultou em um rosto desfigurado e a prisão em flagrante do autor. A moça sofreu […] fraturas no nariz, na mandíbula, na estrutura óssea do globo ocular, na bochecha e na base superior do maxilar”. Juliana precisará de cirurgia para reconstrução facial. O vídeo circula nas redes sociais e para muitas pessoas é “inassistível”, por tamanha crueldade a olho nu, entendida como tentativa de feminicídio.
Após tamanha repercussão, sempre há quem pergunte: “Mas, o que ela fez?”. De imediato, a resposta não pode ser outra: nada justifica tamanha violência. Logo, o que ela falou ou fez anteriormente não está em questão. A questão seria a seguinte: “O que levou o acusado a se sentir autorizado a manifestar toda sua raiva em 61 socos no rosto da sua namorada?”. O que socialmente se permite contra as mulheres para um homem ousar ser filmado atuando daquela forma? O sentimento de impunidade ou o costume de reagir daquela forma frente a uma frustração? O que ocorreu chama a atenção para uma questão importante: a identificação e tomada de decisão rápida, frente aos primeiros indícios ou pistas de que a relação oferece riscos, tanto à saúde física da mulher, quanto à saúde psíquica.
Estudos mostram que minha experiência também me permite afirmar que situações como esta, que resultam em agressão severa, não começam por ela. A violência admite uma escalada, que pode começar com xingamentos e pequenos empurrões. Mas, como aprender a perceber os detalhes, se o senso comum tende a aceitar xingamentos e pequenos empurrões como desavenças menores que compõem um relacionamento de afeto ou conjugal? A resposta comum a esta questão envolve a identificação das situações de desrespeito que SEMPRE ocorrem antes da agressão física ou da tortura psicológica.
No entanto, parece receita de bolo, mas, estar em situação de violência, conseguir perceber e dar a devida importância às manifestações de desrespeito não é tarefa simples. Ligar o sinal de alerta pode não ser tão simples. Por isso, relembro que “o basta” no início de um relacionamento abusivo só será possível se a mulher tiver consciência do que deve ou não tolerar e do valor que ela tem como ser humano. Assim, como, “o basta” durante relacionamento que já passaram da fase inicial deve seguir um rito, para que se obtenha sucesso em romper o ciclo violento. Nesse segundo caso, sugiro atenção ao “Plano de Denúncia” que formulei e inseri na minha defesa de tese de doutorado em 2023, o qual pode ser um farol para muitas mulheres que sabem que precisam reagir, mas ainda se veem sem direção.
Resumidamente, o “Plano de Denúncia” foi elaborado considerando 6 etapas, são elas: 1) Fortalecimento de si mesma; 2) Identificação dos aliados; 3) Principais desafios; 4) Elementos facilitadores; 5) Elementos-base para o recomeço; e 6) A denúncia ou o rompimento do ciclo violento sem que a formalização da denúncia seja feita; o que passo a descrever, pontualmente, na sequência.
Etapa 1 – Fortalecimento de si mesma – Envolve o autoquestionamento provocado ou espontâneo sobre a situação vivenciada. Ao perceber o que ocorre, a mulher pode demorar semanas ou meses para se sentir segura em avançar para os próximos passos. Vale lembrar que um dos aspectos mais importantes nesse processo é o fortalecimento emocional, o “empoderar-se”, no sentido da sustentação da decisão de ruptura de certa relação abusiva. Enfraquecida, a mulher dificilmente levará à frente um plano.
Para tanto, canais públicos para informação, como o Disque 180, podem ser muito úteis. Por outro lado, sobre o autocuidado com a saúde mental, no caso de mulheres que não têm condições de custear sessões terapêuticas com profissionais da psicologia e/ou não estão inseridas em grupos de apoio ou similares, são utilizadas com êxito, para consultas e orientações, as contas nas redes sociais, tanto de profissionais da área, quanto de coletivos de mulheres – encontradas nas plataformas Youtube, Instagram e Facebook, por exemplo;
Etapa 2 – Identificação dos aliados – Relaciona-se desde a identificação dos membros da rede de apoio primária – família e amigos –, até a representação dos órgãos que compõem a rede de enfrentamento à violência contra as mulheres do entorno da demandante. Inclui-se, por exemplo: técnicos (as) e/ou auxiliares do Centro de Referência de Assistência Social; os (as) agentes comunitários (as) de saúde; os (as) líderes religiosos; e as referências comunitárias. Importante que a situação seja partilhada com alguém de confiança da mulher, mesmo que isso fique, inicialmente, em sigilo;
Etapa 3 – Principais desafios – A situação envolve um perfil de autor agressivo? Há risco em potencial de lesão corporal e/ou morte? A ofendida depende financeiramente do agressor? Têm filhos em comum ou de outro relacionamento que sejam crianças e/ou adolescentes? Falta apoio familiar e/ou institucional? Sente culpa em razão da situação vivenciada? Sente-se permanentemente ameaçada e com medo? Sente compaixão pelo agressor? Sente que poderia oferecer-lhe mais uma chance?;
Etapa 4 – Elementos facilitadores – A independência financeira, embora não seja um fator determinante, é um importante facilitador. A decisão espontânea de que a saída da situação violenta precisa acontecer geralmente deve-se ao acolhimento e aos apoios das redes sociais, que envolvem o núcleo familiar, amigos, grupos/coletivos de mulheres, comunidade e membros das organizações governamentais e não governamentais. Se algum desses apoios forem reais, devem ser fortemente explorados.
Etapa 5 – Elementos-base para o recomeço – Esta é a etapa que se firma com referência nas demais, a mais particular delas. Relaciona-se sob três estruturas: Econômica – qual é a particularidade da situação? Apoio moral – familiares e amigos dão suporte? Autoconfiança – acredita em si o suficiente para caminhar sozinha?
O cruzamento das cinco primeiras etapas sugere um mapa da situação, que permitirá a elaboração de um plano individual de denúncia, traçado minimamente para oferecer à mulher melhor clareza no sentido do rompimento do ciclo que, simbolicamente, a aprisiona em uma dinâmica de sofrimento que se estende aos demais membros da família. Por fim, após o plano traçado, sem êxito no rompimento do ciclo violento de forma não conflituosa, o recurso útil e necessário é a denúncia.
Etapa 6 – A denúncia –Nessa fase, a mulher deve registrar o boletim de ocorrência policial em uma base da Polícia Militar ou Polícia Civil, relatando, se possível, cronologicamente, as situações vivenciadas anteriormente – violências psicológicas, morais, sexuais, patrimoniais e/ou físicas, além de enfatizar a última situação violenta sofrida por ela. Em Minas Gerais é possível o registro via delegacia virtual.
Referência: https://fonte-segura.forumseguranca.org.br/ plano-de-denuncia-6-etapas-rumo-a-quebra-do-ciclo-de-violencia-domestica-contra-as-mulheres/ e no corpo da tese intitulada: “Molduras do Feminicídio […]”, disponível em: https://philos.sophia.com.br/terminal/9383/acervo/detalhe/19254