Medo e vergonha versus liberdade: o percurso de Maricélia para vencer a violência

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Juliana Lemes da Cruz. Doutoranda em Política Social – UFF. Pesquisadora GEPAF/UFVJM. Coordenadora do Projeto MLV. Contato: julianalemes@id.uff.br

Dar visibilidade à temática da violência contra as mulheres é mais do que criar um ambiente de sensibilização das pessoas, deveria ser uma responsabilidade de todos que almejam uma sociedade mais justa. Falar de igualdade entre homens e mulheres vai além de problematizar questões relacionadas à ocupação de postos de decisão ou espaço no mercado de trabalho formal. O apreço pela igualdade de gênero demanda mais do que o discurso afetuoso de respeito e reconhecimento da capacidade laborativa feminina.

A violência contra as mulheres alcança todas as dimensões da vida social e costuma ficar silenciada no espaço doméstico, no âmbito da família, compreendido socialmente, como um lugar seguro, de aconchego e amor. No entanto, a realidade prática coloca por terra essa impressão de harmonia dos lares e expõe toda a violência que o cerca. Violência que parte de membros considerados chefes, geralmente provedores, do sexo masculino, contra crianças, adolescentes e suas companheiras – mulheres.

Com a devida autorização para exposição de sua história e imagens a ela relacionadas, conheceremos a seguir, o relato de vida da Maricélia Coelho no âmbito das quase três décadas de casamento. Ela é mãe, residente no município de Teófilo Otoni, classe média, consultora-líder Natura, independente e livre de violência.

Maricélia foi casada por 28 anos, grande parte desse período sob ameaças, chantagens e medo. Com o psicológico abalado, ficou por dois anos pensando em como sair de casa. Buscou ajuda e começou a fazer terapia. Mesmo fazendo o tratamento, ela achava que teria que permanecer no relacionamento abusivo. “O jeito era eu ficar dentro de casa, calar e me sujeitar. Ouvir aquelas ameaças e as palavras de desmotivação […]”. Em geral, as mulheres têm muita dificuldade em perceber que conseguem caminhar sozinhas porque estão inseguras, e por vezes, não encontram apoio de familiares, amigos ou profissionais que as incentivem a romper o ciclo da violência. Pelo contrário, algumas pessoas importantes na vida da mulher acreditam estar ajudando-a quando a orienta a insistir na manutenção da relação.

“Eu pensei muito e o psicólogo me ajudou a enxergar que eu já me mantinha sozinha, que eu quem pagava as contas, que somente a casa é que era comum aos dois e que eu não precisaria passar por aquela situação. Coloquei isso na minha cabeça: tinha que haver uma solução. Chegou ao ponto de apenas o olhar dele me dar medo. Quando ele saía de casa era um alívio, mas quando o portão batia, indicando que ele havia chegado, nosso coração ia a mil – meu e de minha filha. A gente não sabia como essa pessoa ia chegar dentro de casa. Era as vezes muito agressivo. Ele nunca foi de me bater, mas me ameaçava. Fazia de tudo para eu não sair de casa. Em certo ponto da terapia eu vi que a casa não tinha tanta importância pra mim, porque eu queria viver, queria ser feliz. Uma certa noite ele chegou muito bêbado, muito agressivo, só falava em matar, matar e matar. Eu tinha medo, mas ainda era suportável. Nesse dia, eu decidi que não daria mais. Eu já estava fortalecida e vi que aquele era o momento. Eu saí com a roupa do corpo.

Maricélia relatou ainda que ela sofria muito nesse relacionamento, mas tinha sua ocupação. Disse que houve um período em que ela focou toda sua energia no trabalho, sabendo que a situação que ela passava não deveria afetar a sua fonte de renda. “Eu não poderia deixar o problema acabar comigo e com o meu trabalho. Na verdade, comigo, já tinha acabado: do jeito que eu estava, parecia que um vento me derrubaria, de tão fraca, velha, feia, desanimada, desmotivada, não tinha ânimo pra nada.

Hoje, estou 30 anos mais nova do que eu estava naquela fase da minha vida. Eu acredito que não se pode desanimar, tem que buscar ajuda. Não é fácil! Mas depois que você coloca o pé pra fora, a liberdade não tem preço. Não tem nada que pague: não tem casa, não tem dinheiro. Eu fiquei muitos anos sofrendo pensando em casa. Hoje, eu e minha filha trabalhamos e pagamos nosso aluguel. E pago com orgulho e satisfação, porque hoje eu estou liberta, eu estou livre e isso não tem preço. Eu vejo que algumas mulheres, as vezes, conseguem sair, mas acabam voltando para a relação violenta porque não tem uma renda ou não querem ficar na casa da família.

O trabalho é um refúgio e uma fonte de renda. Coloque na sua cabeça que você pode. Quando eu saí de casa eu pensei: eu posso, eu tenho condições, eu não preciso viver uma vida desse jeito. Eu não preciso ficar mendigando atenção de ninguém, aguentando a humilhação dos outros. Vamos fazer cinco anos de liberdade e essa liberdade não tem preço. Tem algumas fotos aqui que eu olho e tenho vergonha, mas ao mesmo tempo eu tenho orgulho de ter sobrevivido”.

Maricélia confessou que fica triste ao olhar as fotos, ver como estava e como deixou chegar àquele ponto. Mas, por outro lado e ao mesmo tempo, diz se sentir alegre e muito orgulhosa por ter conseguido superar aquela situação. Por isso, expõe abertamente o que passou na sua vida. Ela deixa- -nos nesta edição uma mensagem de incentivo à todas as mulheres que acham que o que elas estão passando não tem solução. Ela compartilha que nessa fase há ameaças, a mulher não enxerga saída e isso é normal.

“A gente realmente não vê uma solução. A gente acha que a pessoa vai matar a gente, insiste que a gente não é capaz, que não vivemos sem ele…o psicológico da gente fica muito abalado Casamento não é prisão, é ter companheirismo, é andar junto, é um ajudar o outro, não um colocar o outro pra baixo. Eu superei as dores, hoje eu consigo falar sobre; hoje eu não tenho medo; hoje eu quero servir de exemplo para outras mulheres. A palavra de hoje é superação!”.

Mesmo silenciadas por medo e vergonha, sob o tradicional discurso da preservação da família, no molde perfeito e esperado socialmente, muitas mulheres estão compreendendo que falar sobre o assunto para outras mulheres, pode ajudar a transformar vidas e reorientar o sentido da família. De modo que a liberdade de seus membros seja um condicionante fundamental para ser considerada, de fato, um lar livre de violência.

Importante ressaltar que Maricélia contou com o apoio de sua filha, de uma amiga que a acolheu em sua casa por 15 dias, com o acompanhamento dos órgãos de segurança pública e justiça, além de profissionais qualificados que a direcionaram para que rompesse o ciclo violento. Maricélia é apenas uma, dentre tantas, que vivenciam situações similares e ainda não despertaram para a liberdade. Por um lado, porque falar sobre isso constrange, por outro, a temática ainda é bastante negligenciada em todos os círculos sociais e vista como uma demanda secundária, não reconhecida o bastante para ser incorporada à agenda pública como prioridade.

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